O farol abre e a
onda selvagem de pessoas na calçada dos números pares da Avenida Paulista vai
me mastigando e ruminando enquanto ando. É tanta gente lá pela hora do almoço,
perto do prédio da Gazeta, que não se sabe mais distinguir entre os pensamentos
dos outros e os próprios. Somos tantos dando passos juntos, tropeçando nos
mesmos degraus, invadindo os mesmos faróis, que acabamos trombando também mais
em nós mesmos, caindo nas próprias histórias, sendo engolidos pelos medos. Não
dá para sair correndo, de modo que apenas enfrentamos a massa furiosa em busca
do almoço, da casa, da água livre e rasa. Se debatem como peixes subindo o rio.
Mas quando você nada do lado contrário, acaba correndo o risco de te repararem.
Seu olhar também se torna mais potente, porque poucos são os observados de
frente.
Talvez seja por
isso que todos os dias o homem dança na mesma calçada, sempre encarando os
cardumes. No entanto, enquanto me debato, ele reina em um círculo próprio no
asfalto da urbe. Seu espaço é demarcado pela massa que me engole e desvia dele
como se fosse um ser vivo inteligente. Ele, por outro lado, conhece bem aquele
habitat natural. Ao som do hino nacional, dá passos imprecisos para todos os
lados, bate suas castanholas e vibra o corpo inteirinho como uma serpente
desajeitada que nunca dá o bote final.
Ele é todo
colorido e na natureza sabemos bem que esses seres são os mais venenosos, mesmo
que ataquem apenas para se proteger de predadores mais vorazes, como eu e você.
Prova disso é o primeiro pensamento: “aquele pobre diabo, que nasceu sem
talento e fica aí se esforçando. Aquele ser com parafuso solto, que ninguém
conseguiu apertar, que fica aí, nadando contra os cardumes”.
Só então percebo
que eu e ele somos os únicos com os corpos apontados na mesma direção. Eu
lutando. Ele dançando porque o círculo é seu ringue. Vou nadando naquele rio de
concreto, presa entre os peixes. Ele é todo corpo se expressando, deixando as
mãos indo e vindo na terra dos cardumes. Uma menina, desses peixes bem
arrumadinhos, dá umas moedas. Por que precisa ser bom? Me pergunto. Porque o
artista não pode ser fogo na água de pedra? Dançar com suas castanholas
estranhas, criando a própria música. O círculo do lado que se queira estar.
Munir-se de cor contra o veneno.
Ele me picou. E
me picou porque eu o ataquei. Fico alucinando na lucidez entre os cardumes.
Quero estender o braço para que o homem dançando me puxe. Mas, diferente de
mim, ele olha sem pena. E me pica de novo. Porque aquele é o círculo dele. Eu
que tenha a coragem de fazer o meu próprio se sou tão artista quanto digo ser.
E mais uma picada para que eu olhe ao que dizem ser loucura e oferte ela
reconhecendo o bem valioso que é ter “parafuso solto” na terra dos cardumes.
Viver arrastada
assim não dá. Tentar passar os dias no meio dos peixes porque lá é que se
esconde melhor. Destoar, porque não se aguenta, e virar dentro da corrente a
todo o momento para buscar o que não quer revelar. Ignorar a própria natureza
selvagem porque é confortável ser cardume, até que não é mais. Dizer a todo o
momento que vai sair do cardume e ter medo de não ser suficiente ao dançar no
próprio ringue.
Ter pena de quem
tem pena de você. Porque você é o cardume infeliz, o que é pior do que só ser
cardume. Ter a coragem de dançar a caminho das críticas e do ridículo sem
esperar o contrário. Mas dançar porque a dança te alimenta. Dançar na Paulista
porque qualquer lugar é seu palco. Dançar até não poder mais pela satisfação de
ser peixe e não cardume. Dançar pela vida e não pelo aplauso. Dançar até criar
círculos, até a massa desviar, até a perna bambear e o fôlego acabar. Ser
finalmente peixe na terra dos cardumes sem jamais se contentar, sem deixar de
ser fogo em água de pedra, sem esquecer que peixe sempre corre o perigo de
voltar a ser cardume.