8 de dezembro de 2016

Na terra dos cardumes



O farol abre e a onda selvagem de pessoas na calçada dos números pares da Avenida Paulista vai me mastigando e ruminando enquanto ando. É tanta gente lá pela hora do almoço, perto do prédio da Gazeta, que não se sabe mais distinguir entre os pensamentos dos outros e os próprios. Somos tantos dando passos juntos, tropeçando nos mesmos degraus, invadindo os mesmos faróis, que acabamos trombando também mais em nós mesmos, caindo nas próprias histórias, sendo engolidos pelos medos. Não dá para sair correndo, de modo que apenas enfrentamos a massa furiosa em busca do almoço, da casa, da água livre e rasa. Se debatem como peixes subindo o rio. Mas quando você nada do lado contrário, acaba correndo o risco de te repararem. Seu olhar também se torna mais potente, porque poucos são os observados de frente.

Talvez seja por isso que todos os dias o homem dança na mesma calçada, sempre encarando os cardumes. No entanto, enquanto me debato, ele reina em um círculo próprio no asfalto da urbe. Seu espaço é demarcado pela massa que me engole e desvia dele como se fosse um ser vivo inteligente. Ele, por outro lado, conhece bem aquele habitat natural. Ao som do hino nacional, dá passos imprecisos para todos os lados, bate suas castanholas e vibra o corpo inteirinho como uma serpente desajeitada que nunca dá o bote final.

Ele é todo colorido e na natureza sabemos bem que esses seres são os mais venenosos, mesmo que ataquem apenas para se proteger de predadores mais vorazes, como eu e você. Prova disso é o primeiro pensamento: “aquele pobre diabo, que nasceu sem talento e fica aí se esforçando. Aquele ser com parafuso solto, que ninguém conseguiu apertar, que fica aí, nadando contra os cardumes”.

Só então percebo que eu e ele somos os únicos com os corpos apontados na mesma direção. Eu lutando. Ele dançando porque o círculo é seu ringue. Vou nadando naquele rio de concreto, presa entre os peixes. Ele é todo corpo se expressando, deixando as mãos indo e vindo na terra dos cardumes. Uma menina, desses peixes bem arrumadinhos, dá umas moedas. Por que precisa ser bom? Me pergunto. Porque o artista não pode ser fogo na água de pedra? Dançar com suas castanholas estranhas, criando a própria música. O círculo do lado que se queira estar. Munir-se de cor contra o veneno.

Ele me picou. E me picou porque eu o ataquei. Fico alucinando na lucidez entre os cardumes. Quero estender o braço para que o homem dançando me puxe. Mas, diferente de mim, ele olha sem pena. E me pica de novo. Porque aquele é o círculo dele. Eu que tenha a coragem de fazer o meu próprio se sou tão artista quanto digo ser. E mais uma picada para que eu olhe ao que dizem ser loucura e oferte ela reconhecendo o bem valioso que é ter “parafuso solto” na terra dos cardumes.

Viver arrastada assim não dá. Tentar passar os dias no meio dos peixes porque lá é que se esconde melhor. Destoar, porque não se aguenta, e virar dentro da corrente a todo o momento para buscar o que não quer revelar. Ignorar a própria natureza selvagem porque é confortável ser cardume, até que não é mais. Dizer a todo o momento que vai sair do cardume e ter medo de não ser suficiente ao dançar no próprio ringue.

Ter pena de quem tem pena de você. Porque você é o cardume infeliz, o que é pior do que só ser cardume. Ter a coragem de dançar a caminho das críticas e do ridículo sem esperar o contrário. Mas dançar porque a dança te alimenta. Dançar na Paulista porque qualquer lugar é seu palco. Dançar até não poder mais pela satisfação de ser peixe e não cardume. Dançar pela vida e não pelo aplauso. Dançar até criar círculos, até a massa desviar, até a perna bambear e o fôlego acabar. Ser finalmente peixe na terra dos cardumes sem jamais se contentar, sem deixar de ser fogo em água de pedra, sem esquecer que peixe sempre corre o perigo de voltar a ser cardume.



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