- Que droga de vida. Eu estou aqui esperando nessa
torre do castelo e absolutamente ninguém aparece para abrir essa única porta ou
assoviar de lá de baixo. Não sei para quê cultivar essa trança estúpida. Estou
tão infeliz. – Rapunzel sibilava como uma criança de seis anos, resmungando por
todas aquelas incoerências, enquanto apoiava a cabeça na sua mão.
- Quanto mais você bancar a coitada, mais a vida vai
te dar motivos para ser uma de verdade.
Rapunzel assustou-se, olhou na direção que o som
vinha e percebeu uma mulher de meia idade sorrindo.
- Quem é você? – Perguntou sem hesitar.
- Meu nome é Realidade, mas você pode me chamar de
Rê.
- Está certo, Rê. Mas você não me serve. Agora, por
favor, saia daqui para que alguém realmente possa me salvar.
- Escute aqui, garota estúpida. – Rapunzel arregalou
os olhos e parou de enfeitar a trança. – Será que você não percebeu que nunca
tentou forçar a porta? Vai mesmo ficar aí parada esperando que alguém a salve,
que alguém a faça feliz? Não acha que está colocando muita responsabilidade nas
mãos de alguém?
Rapunzel foi esquivando para trás, as perguntas
ricocheteavam nela. Tentar forçar a porta?
- Não teria força para arrombar a porta. – Disse irresoluta
no seu parecer.
- Já tentou pegar aquela cadeira de madeira maciça? –
A mulher apontou.
- Eu poderia quebrar minha mão tentando abrir a
porta com isso.
- A questão não é essa, garota. Há sempre o risco de
quebrar a mão. Mas eu não sei por que estou falando tudo isso para você, realmente
você acha que a responsabilidade de toda a sua infelicidade é de alguém que
deveria ter chegado e ainda não chegou?
- Mas e se eu conseguir abrir a porta? O que eu
farei depois? É óbvio que vou continuar sozinha e infeliz.
- Você pode continuar sozinha, mas jamais infeliz. Pode
ter a melhor pessoa do mundo ao seu lado, mas ela não vai lhe bastar se você
não se fizer feliz.
Rapunzel cerrou os olhos. Ela estava mesmo colocando
muita responsabilidade em alguém, tantas vezes ela acordou sozinha naquele
castelo e foi capaz de cantar e dançar. Tantas vezes ela riu e se entreteve sem
ninguém. Determinada, ela andou até a cadeira de madeira e a pegou, olhou mais
uma vez para a mulher na sua frente:
- Mas e se...
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. – A
mulher interrompeu impaciente.
Rapunzel andou para trás, tomou impulso enquanto
segurava a cadeira e correu. Um som de madeiras batendo tomou todo o cômodo, Rapunzel
caiu um pouco tonta. Atrás da porta e da cadeira caídas estava uma enorme
escada e ela desceu sem pensar duas vezes. Logo atrás estava Realidade
sorrindo.
Quando terminou de descer viu que um rapaz estava
olhando a torre, Rapunzel começou a gargalhar.
- Se você veio para me salvar, chegou tarde. Não
preciso ser salva. – Empinou o nariz ao terminar de dizer.
- Você estava lá dentro sozinha? – O homem a olhou
encantado, surpreso e temeroso. Encantado pela beleza que estava diante de seus
olhos, surpreso pelo tom com que ela lhe dirigia a palavra e temeroso por ela
ter ficado presa naquele lugar.
- Estava. Mas adivinhe só? Ninguém pode ser
responsável pela minha felicidade, não acha que estou colocando muita
responsabilidade em cima de você ao esperar que você me salve?
A realidade não pôde conter o riso ao seu lado,
enquanto isso o homem tentou dizer em vão:
- Mas eu...
Não terminou a frase, Rapunzel cortou sua fala como
se sua voz fosse uma faca afiada.
- Eu não preciso de ninguém para ser feliz, posso
perfeitamente ser feliz sozinha. Por isso, vou pegar este cavalo e ir embora.
Espero que você também não deposite toda a responsabilidade de sua infelicidade
em mim e não diga que eu sou a causa de todo o seu sofrimento. Mas se quiser
fazer isso, a porta da torre está aberta.
Dito isso, ela montou no cavalo e saiu a galope
enquanto a Realidade fazia uma careta.
- Rapunzel? – De alguma forma Rê estava logo atrás
da garota impetuosa, mas ela sequer se atreveu a olhar para trás.
- Agradeço o que você fez por mim Rê, mas eu não
preciso de ninguém para ser feliz. – Ela segurava firmemente as rédeas enquanto
sentia o vento acariciar o seu rosto.
- Rapunzel.
- Rê, dispenso sua companhia agora. Não quero pôr a
responsabilidade de minha felicidade em cima de você.
- Rapunzel! – A Realidade gritou em uma voz tão
aguda que o cavalo se assustou, empinou-se e Rapunzel não conseguiu se segurar,
escorregou até encontrar o chão.
- Você está louca? – Disse Rapunzel enquanto tentava
ajeitar o vestido e se levantar. – Eu poderia ter quebrado a minha mão!
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. –
Realidade argumentou um pouco entediada com toda aquela situação.
- Por que fez isso? – A garota ainda estava um pouco
tonta e mexia no pulso, provavelmente verificando que estava tudo bem.
- Escute aqui, garota estúpida. Quem você acha que
é? Só porque conseguiu abrir uma porta velha e cheia de cupins está achando que
não precisa de ninguém para nada? Só porque conseguiu sair de uma torre idiota,
percebendo que estava bancando a tonta, agora decidiu ser mais tonta ainda.
Rapunzel a olhou:
- Do que você está falando? Foi você mesma que disse
que eu deveria sair da torre e não precisava de ninguém para ser feliz.
Realidade bufou, soprando alguns fios que estavam na
frente de seu rosto.
- Sente-se um pouco. – Ela segurou a mão da garota. –
Eu não disse isso. Eu disse que só você tem o poder de decidir quando vai ser
feliz, mas realmente você acha que poderia ser feliz completamente sozinha? –
Rapunzel ainda a olhava confusa. – Você realmente acha que saindo nessa floresta
sozinha, não precisaria da ajuda de ninguém e que seria capaz de conversar
apenas com as árvores?
- É muito triste ficar sozinha. – Rapunzel concordou
lembrando-se dos dias chuvosos e tediosos dentro daquela torre.
- Eu disse para ir atrás da sua felicidade,
independente de qualquer pessoa. Não disse para se fechar do mundo inteiro e
achar que não precisa de ninguém para nada. Ou você acha que consegue ser um
robô, sem convívio social, sem sentir o que é amar? Sem saber o que é dizer
algo bobo e rir em conjunto, sem saber o que é dividir alguns problemas e
tristezas?
- É, acho que eu não conseguiria. – De súbito, Rapunzel
começou a chorar e berrar. – EU FAÇO TUDO ERRADO, SOU UMA PESSOA IDIOTA. DEIXEI O RAPAZ QUE VEIO DE
BOA INTENÇÃO TENTAR ME SALVAR SEM AO MENOS EXPLICAR A SITUAÇÃO PARA ELE. E EU
ROUBEI O SEU CAVALO, QUE TIPO DE PESSOA EU SOU? MEREÇO APODRECER NAQUELA TORRE.
É ISSO. VOU VOLTAR E ME TRANCAR LÁ NOVAMENTE.
Enquanto
Rapunzel falava, Realidade olhava as unhas. Estavam lascadas, será que aquilo
iria demorar muito?
- POR FAVOR , ME DEIXE LÁ E NÃO VOLTE MAIS PARA ME SALVAR.
Mais uma vez Realidade colocou a mão na testa e
soltou uma voz estridente.
- Cale a boca, garota estúpida. – Agora ela podia
sentir que Rapunzel parava de chorar e a olhava. – Quanto mais você bancar a
coitada...
- Mais a vida vai te dar motivos para ser uma de
verdade. – Rapunzel completou a frase limpando as lágrimas.
De súbito levantou-se e subiu no cavalo. Ainda tinha
o pulso um pouco dolorido.
- E se eu cair e realmente quebrar a mão dessa vez?
- Sempre há o risco de você quebrar a mão. –
Realidade disse dando um tapinha no cavalo que começou a andar.
- Rê, ele é um príncipe? – Ela não pôde evitar fazer
essa pergunta.
- Pode ter certeza que não. – A mulher respondeu sorrindo e acenando. A
garota agora galopava contra o vento.
Guiou o cavalo em direção à torre e pôde ver um
homem sentado e entediado fazendo um círculo na terra.
- O que você está esperando? – Rapunzel tirou-lhe a
concentração, ele ficou um tempo a olhando sem entender porque ela tinha
voltado.
- Meu amigo estava bem atrás de mim, logo ele me
achará. – Ele sorriu confiante, era bonito e ela nem havia reparado o quanto.
- Desculpe pelo que lhe falei hoje, fiquei muito
tempo presa lá dentro e quando finalmente sai... Bem, as ideias não estavam
fluindo muito bem. Desculpe-me.
Ele iria dizer que não desculpava, mas ela parecia
totalmente arrependida. Estendeu a mão e docemente disse:
- Prazer, sou Rapunzel. Você não é algum príncipe de
uma província, é?
Ele riu:
- Prazer, sou Luís. Não sou um príncipe, sinto
muito.
Rapunzel deu de ombros:
- Tudo bem, me avisaram que você não era.
- Quem te avisou?
Ao longe a mulher sorria. Ela podia reconhecer um
pouco de Rapunzel nele e, na verdade, ela podia reconhecer um pouco de Rapunzel
em todo mundo.
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