por: Bruna Meneguetti
Duas vizinhas
conversando na soleira de uma janela.
- Ficou sabendo o
que o tal marido desconhecido fez para ela?
- Pois é, aposto que ela não o perdoou.
- Eu não perdoaria, apesar de que ela merecia. Oh mulherzinha ruim!
- Não me diga que descobriram o que o marido fez pra aquela jararaca?
- Praquelajararaca? – Riu-se Matilde com a sonoridade das palavras.
- Pois é, aposto que ela não o perdoou.
- Eu não perdoaria, apesar de que ela merecia. Oh mulherzinha ruim!
- Não me diga que descobriram o que o marido fez pra aquela jararaca?
- Praquelajararaca? – Riu-se Matilde com a sonoridade das palavras.
- E por falar em Jararaca...
– Dona Cândida apontou com os olhos para a rua.
A figura de um
homem idoso dobrava a esquina, trazia consigo um saco de pão preso entre o
braço e a coluna.
- Sinceramente,
eu não entendo porque todo dia ele faz a mesma coisa. – Matilde disse quebrando
o raciocínio da conversa anterior.
O velho trajava uma roupa simples, calçado confortável e um chapéu.
O velho trajava uma roupa simples, calçado confortável e um chapéu.
- Parece que veio
diretamente dos anos quarenta, credo. – Riu Dona Cândida.
- Enfim, continue,
você sabe quem é o marido dela? – Matilde tentou retormar.
- Não faço ideia.
- Não faço ideia.
As duas calaram-se por um momento esbanjando um sorriso quando o
idoso chegou ainda mais perto. Não estavam numa janela qualquer; Dona Cândida
era florista e deixava as flores que sobravam de seus arranjos penduradas do
lado de fora da casa, onde alguém poderia pegá-las sempre que quisesse.
Todo dia, depois de passar na padaria, o Sr. Amadeu virava a
esquina, descia a rua e pegava uma flor. Qualquer flor que estivesse disponível
era alvo de seu dedo certeiro. A primeira flor que via o fazia esticar-se e pegá-la, como quem tirasse um fio de uma blusa e a fizesse descosturar
por isso. Assim mesmo, quase sem querer.
O velho - de cara
amarrada, cabelos lisos e brancos -, aproximou-se com o mesmo semblante de
sempre.
- Cara de quem
comeu e não gostou. – Matilde disse baixinho entre os dentes que ainda
esbanjavam um sorriso.
O homem sempre fazia seu gesto costumeiro: abaixava a cabeça em
sinal de cumprimento, pegava uma flor e, em seguida, falava:
- Vou levar pra aquela jararaca.
Matilde e Dona Cândida se esforçaram para conter o riso. Assim que
ele saia as duas ficavam debatendo o significado daquela cena que se repetia diariamente.
- Jararaca deve ser o nome da mulher.
- Quem se chama Jararaca, Matilde?
- Quem se chama Jararaca, Matilde?
- Então pode ser que seja “Praquelajarará”, fica mais íntimo.
Dona Cândida riu.
- Conheci uma Gurminda que registraram errado, ficou Durminda. Mas,
enfim, ele se refere a ela assim todo dia e, ainda assim, pega uma flor. O nome
dela com certeza não é Praquelajarará.
O homem ignorava a conversa das duas enquanto descia a rua. Quando
pegava as chaves e as colocava na fechadura, não muito longe dali, tentava não
esmagar a flor que trazia.
- Cheguei, – Anunciou. – minha Jarará. – Disse baixinho o resto da frase para que a esposa não ouvisse.
- Cheguei, – Anunciou. – minha Jarará. – Disse baixinho o resto da frase para que a esposa não ouvisse.
Ele colocou a flor no vaso que havia em cima da mesa do café da
manhã e que parecia já esperar a flor. Sua mulher, habituada com a cena diária,
sentiu-se arrancada da típica naquela manhã, nunca indagara porque Amadeu fazia
a mesma coisa todos os dias. Luiza olhou para a flor no vaso e avistou o
sorriso amarelo de Amadeu por detrás.
- Amadeu, onde você pega essas flores? Cada dia é uma diferente. –
Luiza começou a questionar.
- Isso não importa, Luiza. – Amadeu abaixou os olhos e contraiu os lábios.
- Isso não importa, Luiza. – Amadeu abaixou os olhos e contraiu os lábios.
- Preferia que não trouxesse nada a ficar com essa cara amarrada. Por
que todo dia você me traz flores?
- Sinto que preciso me desculpar. – Amadeu respondeu entrando em pensamentos obscuros.
- Sinto que preciso me desculpar. – Amadeu respondeu entrando em pensamentos obscuros.
- Se desculpar pelo quê? Amadeu, eu já o perdoei.
- Ainda assim sinto que preciso me desculpar, foi um erro grave.
- Faz tanto tempo, Amadeu! – Luiza falava incrédula, não imaginava que esta poderia ser a razão das flores. - Deveria parar de se sentir mal com isso e de comprar flores todos os dias. Não as quero mais.
- Faz tanto tempo, Amadeu! – Luiza falava incrédula, não imaginava que esta poderia ser a razão das flores. - Deveria parar de se sentir mal com isso e de comprar flores todos os dias. Não as quero mais.
- Eu não as compro.
- Não as compra? De onde elas vêm? Por algum acaso você as rouba
do cemitério do lado de casa, Amadeu?
O homem, sem saber o que dizer, confirmou.
- Você rouba flores dos mortos, Amadeu! E ainda é para sentir que
eu te perdoo de algo que já perdoei. Quando você morrer, porque você há de
morrer antes, vou roubar todas as flores de seu túmulo e dar para o meu futuro
marido.
E Amadeu pensava “como é jararaca”, mas respondia:
E Amadeu pensava “como é jararaca”, mas respondia:
- Você tem 70 anos, Luiza. Que peste vai te querer enrugada desse
jeito? Nem passando em rolo compressor.
Luiza ficou rubra.
- Sai daqui, Amadeu. Não precisa mais trazer flores de defuntos. Apesar
de que não é nada mais justo para uma ação que já morreu, mas eu não quero
cortejar este enterro.
Após essa conversa os dias se sucederam sem que Amadeu trouxesse
flores.
- Que foi, Luiza? Está brava? – Amadeu disse preocupado diante da
face triste da mulher.
- Agora que não rouba mais flores de defuntos resolveu que também
não compraria nenhuma flor.
- Sente falta que eu lhe dava flores todos os dias, então?
- Você as roubava de túmulos, não queria flores assim. Esqueça.
- Não entendo, você quer ou não quer receber flores? Elas não eram
de defuntos. – Amadeu soltou uma risada, mas Luiza permanecia séria. –
Mulheres!
- Homens! – Luiza bufou. – Tudo bem, você nunca se importou. Quer
saber, não quero mais nada.
- Não quer mais flores? – Amadeu respondeu irritado.
- Não.
- Tudo bem, então.
Dito isto, Amadeu saiu de casa furioso.
- Ela não quer mais flores? Está bem, não darei mais flores.
Falou para si enquanto subia a rua e passava em frente a casa de
Matilde e Dona Cândida. As duas apenas observavam enquanto Amadeu caminhava para
a rua de trás.
Tirou uma nota alta do bolso.
- Quanto custa comprar 100 dessas?
- O que vai fazer com 100 dessas, Senhor?
- É pra aquela jararaca.
O homem assustou-se.
- Ajudem-me aqui! – Gritou para o pessoal que trabalhava em sua
banca.
Mais tarde, Luiza chegou em casa. Estava quase escurecendo e uma
caminhonete se encontrava parada na entrada.
- Senhora Luiza?
- Sim.
- Temos uma entrega.
Luiza abriu a porta e o homem ordenou que o outro o ajudasse. Começaram a entrar na casa da idosa que usava uma maquiagem leve e um vestido largo.
Luiza abriu a porta e o homem ordenou que o outro o ajudasse. Começaram a entrar na casa da idosa que usava uma maquiagem leve e um vestido largo.
- Esperem, o que é isso? Parem já!
- Não podemos, ele pagou.
Luiza vendo a força e vitalidade dos homens sentiu que seria
inútil lutar contra aquela invasão e despejo. Quando adentrou em sua casa e viu
a massa verde, pensou que estava em um filme romântico às avessas.
- Amadeu! – Gritou ao telefone. – O que são esses 40 alfaces, 20 couves,
10 rúculas e 30 beterrabas? – Fechou os olhos enquanto respirava fundo.
- Você disse que eu não me importava.
- Volte já para cá e dê um jeito nessas verduras!
- A beterraba, na verdade, é um legume.
- Amadeu! – A voz estridente pareceu chacoalhar o telefone.
Cinco minutos depois o homem batia na porta. Luiza abriu.
- Perdoe-me. – Amadeu sorriu.
- Quer o perdão “daquela jararaca”?
- De onde tirou isso?
- Fiquei sabendo. – Luiza deu de ombros. – Enfia uma coisa debaixo
desse seu chapéu; não quero flores que não significam nada e muito menos uma
horta dentro da minha casa.
- Luiza – Amadeu olhou a nos olhos. - As flores eram o único jeito
que eu encontrei para dizer que me arrependia diariamente do meu erro.
Luiza gelou.
- Não quero um homem que se arrependa todos os dias de algo que eu já perdoei e, muito menos, que fique remoendo o passado.
- Não quero um homem que se arrependa todos os dias de algo que eu já perdoei e, muito menos, que fique remoendo o passado.
- Luiza, me responda, não há nada que faria diferente se pudesse
voltar no tempo?
Sua mulher calou-se. Voltar no tempo? Ela não poderia aceitar essa
condição, afinal, é uma condição inexistente. E mesmo que pudesse voltar no
tempo, nada garantiria que tomasse atitudes diferentes, talvez faria as mesmas
coisas, pois relembrar não é o mesmo que reviver.
Se revivesse não saberia se seria capaz de deixar as emoções momentâneas de lado. Portanto, não adiantaria nada voltar no tempo. E, como não há essa possibilidade, concluiu que pensar no “que ela faria se pudesse voltar atrás” poderia não ser uma questão inútil de trazer à tona, mas que era de certo uma questão inútil de ser martelada como forma de punição.
Se revivesse não saberia se seria capaz de deixar as emoções momentâneas de lado. Portanto, não adiantaria nada voltar no tempo. E, como não há essa possibilidade, concluiu que pensar no “que ela faria se pudesse voltar atrás” poderia não ser uma questão inútil de trazer à tona, mas que era de certo uma questão inútil de ser martelada como forma de punição.
- Sim, Amadeu, eu mudaria uma coisa; não deixaria uma plantação de verduras invadirem a minha casa. – Luiza suspirou.
- Na verdade, a beterraba é um legume.
– Que seja, não há porque lamentar sobre algo que já aconteceu. Fazer o quê se eu me sinto em meio a um filme romântico vegan.
- Na verdade, a beterraba é um legume.
– Que seja, não há porque lamentar sobre algo que já aconteceu. Fazer o quê se eu me sinto em meio a um filme romântico vegan.
- Então, o que pode fazer em relação a esse sentimento de culpa?
- Agora eu sei que nunca mais devo abrir a porta quando me disserem
que há uma entrega para mim. – Luiza sorriu. –Aprendi com os meus erros e sei
que aprendeu com os seus.
- Terei que arranjar outro meio da próxima vez.
- Agora você entende?
- Agora entendo.
Uns dias atrás um homem de terno cinza estava andando no metrô.
Tinha a postura determinada, um sorriso no rosto e uma rosa branca na mão
direita. Do outro lado do vagão, um homem falava para a sua mulher:
- Para quem será as flor?
- Talvez para uma namorada. – A mulher respondeu.
- Talvez para uma namorada. – A mulher respondeu.
- Nessa idade? – O homem questionou.
O homem saiu do metrô e desceu a rua, passou em frente a casa de
Dona Cândida e Matilde. Elas apenas conversavam:
- Pois é, pobre Luiza. Quem diria, Amadeu é o marido dela! Deve
ser por isso que pegava flores todos os dias.
- Porém, faz duas semanas que não aparece por aqui.
- Tem razão. Ela nunca deve ter perdoado ele...
Assustaram-se as duas quando viram o homem elegante descendo a
rua. Curiosas, esticaram o pescoço para a calçada e disseram em uníssono:
- Pra quem é a bela rosa branca?
O homem ignorou e continuou andando. Mais a frente, bateu na porta
de uma casa. Endireitou a coluna ao máximo que podia.
- Uma rosa branca? – A mulher respondeu surpresa. – Achei que não
fosse mais me trazer flores.
- Você havia se acostumado com a ideia das flores. Sabe, também
acho que é sua vez de refletir; não há nada melhor que um gesto espontâneo e
inesperado, sem grandes expectativas.
A mulher sabia que ele estava certo e sorriu concordando
internamente.
– E, além do mais, dessa vez ela não é para você.
- Não?
- Absolutamente. É pra aquela jararaca, a minha Jarará.
- Amadeu! – O grito estridente de Luiza fez tremer as
pétalas.
A notícia que inspirou uma parte da crônica: http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-sao-paulo/v/florista-tem-maquina-que-vende-buques-prontos-e-embrulhados-em-sp/3303863/ - (Assistir a partir dos 5min25seg)