Texto autobiográfico
Eu sempre me senti perdida. Um furacão em meio à normalidade, alguém tão inconstante que nunca foi muito capaz de terminar nada que não fosse obrigatório na vida. Uma estranha, mas não uma estranha qualquer. Uma estranha que escrevia. Aliás, essa sempre foi a única certeza em mim, porque, desde que aprendi, a vida inteira venho escrevendo. E é bom, pois aqui você pode ser estranha, inconstante e anormal, já que sempre vai ter alguém que se identifique, mesmo que seja o reflexo de teus próprios olhos na página em branco. E quanto mais perdida, melhor fica, porque o final se mantém surpreendente até para mim. Já o essencial é que não tenha fim! Que por mais que um texto termine, ele continue em pensamentos, na prática e na emoção.
Por isso, não poderia escrever sobre outra coisa de mim além do fato de que eu escrevo. Quase um “Humanitas precisa escrever” ou “Escrevo, logo existo”. Portanto, esse texto é a história dentro da história. Afinal, não é do nada que decidimos que é uma boa tentar jornalismo e, quem sabe, esboçar um livro, ou vários. E eu quero entender. Assim como um texto se faz, não é feito, não surge do vácuo. É um processo longo de uma ideia que fica batendo na cabeça até sair da veia, cair na circulação da caneta e ganhar asas no papel. Portanto, essa reflexão é a representação do mesmo processo. E, se me perguntam como tudo começa, lhes respondo que pensem bem. Primeiro é necessário nascer, e eu diria que nascer é primordial.
Depois disso não há fórmulas concretas. No meu caso, havia uma família particularmente dada a contar histórias. E não é nem que lessem muito. Para ser mais precisa, talvez uma avó seja o ideal. Lembro-me dela dizendo histórias e de meus olhos pasmados observando aquela imaginação solta, revelando a mais linda das invenções da humanidade travestida em palavras. Até que um dia me peguei completando as frases. Percebi pela primeira vez que a imaginação dos outros se esgotava, mas a minha não. Particularmente fui gostando disso.
Quer dizer, esta foi a primeira infecção da qual me lembro. Depois, o processo acontecia tão naturalmente que eu mal podia notá-lo. Havia a distração nas aulas de matemática, os sonhos estranhos dando base para histórias novas e os infinitos diários, bloquinhos, as agendas, cadernos de geometria e de caligrafia (agora me recordo que costumava escrever poemas neles e talvez venha daí a explicação da minha letra ser tão feia). Nos parquinhos eu já fui fada, bruxa, um animal, uma índia, um político, quiçá até jornalista. Nos aniversários, quando não dava para todos brincarem juntos, inventava uma gincana com o chão. De repente, toda a turma estava pulando em uma perna só, dentro de quadrados do piso, enquanto as mãos se esgueiravam para dar tiros nos adversários oponentes e ofereciam proteção para que o resto recarregasse suas armas hipotéticas. Não importa se algo dava errado, eu sempre tinha um jeito diferente de driblá-lo. Certa vez, em um cartão postal, eu escrevi: “Comprei esse cartão com a foto de um esquilo porque não consegui tirar uma foto de um esquilo”. Seria o equivalente da tentativa de achar uma fonte digna? “Eu não vi, mas fulana viu e nos contou, aqui está para que possam ver”.
Mas talvez o primeiro lugar que escrevi mesmo foi nos meus desenhos. Consegui achar coisas de quando tinha uns 6 anos, idade em que se consegue formular frases. Porém, eles também não eram normais, pois atrás havia uma explicação poética. Em resumo, eu dizia o que a obra despertava em mim e qual o sentido que queria dar a ela. Em um deles desenhei um banco, perto de um lago, mais claro à luz da lua (claro que escrever é bem mais bonito que ver a obra prima), e descrevi que era um banco onde se podia namorar, além de como a vida era bela. Noutro, em um desenho completamente abstrato, eu dizia que havia uma passagem para um outro mundo e que o formato era por causa da luz, explicações que assustariam até mesmo Freud e seus seguidores. Talvez por isso eu corria tanto da CIA e costumava ser muito procurada por ela. Queria investigar e descobrir, saber quem eram os outros e como eles viviam. Talvez isso te lembre alguma faculdade, como, por exemplo, jornalismo. Espero que não me julgue se eu contar que pegava os binóculos e ficava olhando as janelas dos prédios da minha varanda. E não, eu nunca vi ninguém pelado. E, pelo amor, não era essa a intenção!
Uma que sofria era minha cachorra, a quem dei o nome carinhoso de “Pipoca”. Sim, eu gosto de pipoca. E, desculpe, mas não tenho a menor ideia se foi por isso que dei tal nome a ela. Mais uma vez estava apenas sendo atípica na minha imaginação. Não sei se foi a sua influência, mas a história inicial do meu livro era um cachorro enfeitiçado que voltava a ser homem e havia se apaixonado por sua dona. Hoje, da história dessa época, quase nada restou. Não há mais cachorros e feitiços, mas eu trabalho nessa história há mais de dez anos. Também costumava fazer certidões de nascimento para os animais e fazia a família assinar, afinal, se um dia eu precisasse de provas... Sim, era meu eu jornalístico falando de novo.
Eu sabia que tinha criatividade e entendia que precisava extravasar ela. Enquanto tinha a minha barraca, meu casamento da Barbie e meu CD do Queen, tudo bem. Eu poderia pôr a música mais obscura deles para tocar na entrada da noiva, fazendo com que ela virasse uma vampira e matasse todos no casamento, que estaria tudo certo. Mas isso não foi nada, para quem já empinou papel higiênico, desceu as escadas de casa em cima de uma almofada, teve uma tábua de madeira como amiga e uma bexiga d’água que explodiu no sofá. O mais irônico é que sempre estava acompanhada nessas loucuras por minha amiga. De alguma forma, a criatividade sempre me aproximou das pessoas. Guardo em uma pasta todas as cartas que recebi dos que mais amo. Aliás, é de lá que resgatei muito do que falo agora. Mas também guardo coisas totalmente aleatórias de gente desconhecida, porque vi nelas uma boa história a ser “apurada”. Até hoje tenho um origami que um velhinho me deu aos 12 anos de idade, simplesmente porque achei incrível o modo como ele fez aquilo tão rápido e me ofereceu sem me conhecer.
O lado poético chegava cada vez mais, mas aos poucos eu fui parando de ter onde extravasar. Por isso, escrevia sem conhecer limites. Penso que sou essa criança frustrada que quer brincar até hoje. Uma vez fiz uma história que julguei tão boa com as minhas bonecas que decidi escrevê-la um dia, porque daria vários livros. Não tenho a mínima ideia do que pensei. Outra vez, desenhei um porta retrato para outra amiga e errei o verbo. Não que isso seja difícil, vivemos errando o verbo com aqueles que mais gostamos. Mas lá dizia: “Continue sonhando, porque é ACREDINTANDO que se consegue”, não sei onde ela está hoje. Talvez o culpado tenha sido o meu impecável português, e talvez na mesma época eu estava em minhas aulas de canto, rasgando o verbo na “guela” em plena quarta série. Nessa época, fazia músicas sobre a natureza e o mundo. Aliás, foram aulas de canto que não terminei, mesmo estando próxima de ficar expert no assunto.
Mas um fato marcante, que lembro muito bem, foi na sexta série, 11 anos, paixonite. Gostava de um garoto, julgava que ele gostava de outra. Rendi-me ao amor dos dois, porque quem ama quer ver o outro feliz e, portanto, sucumbi aos meus mais profundos sentimentos. Me lancei em uma carta totalmente racional na qual eu explicava que tinha admirado ele, mas que deixava os dois ficarem juntos porque mereciam a felicidade. Ele leu e disse: “Mas eu não gosto dela”. Não foi preciso anos para entender como eu tinha sido boba, percebi na mesma hora, e até pensei que eu só podia dar mesmo em escritora. Quem mais faria uma coisa tão dramática quanto essa? Não, nunca ficamos juntos. Sexta série! Não sei que praga é essa que acomete as garotas de começarem a se apaixonar tão cedo. Seria bom ser como os garotos, que só lembram que elas existem muito tempo depois. Afinal, a gente sofre. Ainda mais aspirante a escritora.
Depois veio o colegial e muitas amarguras. Textos sobre a dor de amar, nunca sobre como era ou porque. Mais uma prova de que tudo aquilo era mera invenção da autora. Porém, veio também o amadurecimento, os professores geniais, os documentários incríveis, a visão do mundo que vivemos e, com ela, mais vontade de escrever sobre fatos. Veio também a dança, que não terminei. E o lindo teatro, que não terminei. Eu estava sempre “próxima de”, e quando saia me falavam: “mas você estava prestes a”.
O fato é que eu queria e sempre quis experimentar de tudo, queria conhecer o que estava ao meu alcance e mostrar aos outros. Ia no psicólogo da escola para entender algo que hoje está tão claro para mim quando olho para trás. Que queria fazer jornalismo, que queria escrever sempre. Hoje sei que isso me perseguirá a vida inteira. Se tudo der certo, um dia eu vou morrer, e se tudo der errado também, mas eu sei que a escrita não é algo do qual eu possa me livrar. Ontem reparei que apenas parei de escrever em diários quando criei meu blog, e venho postando lá desde então. É minha sina, tudo de bom e ruim que ela me traz. Sou eu, tal qual criança, dando respostas lógicas, não óbvias e puras para o que não faz sentido ser explicado. Mas principalmente é quem sou, esse ser inacabado que precisa se alimentar de páginas preenchidas.
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