19 de fevereiro de 2016

Hospedeiro intermediário



Era até bonito de ver aquela vasta vegetação de guarda-chuva. Enfim algo que florescesse dentro dos prédios de São Paulo! E quanto mais água, mais desses se instalavam.

Demorei a me assustar diante de um processo nitidamente visto como natural desde os tempos em que tal apretrecho foi criado. No final do dia, eles iam desaparecendo, como a dama da noite inversa, que desabrocha de manhã e a noite se recolhe em seu refúgio.

Houve um dia então que o despertar ocorreu. Na noite anterior, me lembrava, não havia nenhum guarda-chuva. Mas no dia seguinte, que susto, um mar deles se instalara. Embora belos ao longe, quando se chegava perto era nítido que tinham virado uma praga. Todos abertos, arregalados como olhos assustados olhando na mesma direção do corredor. Era difícil passar por eles sem se sentir apequenando diante de tamanha fartura.

Em uma sala, quase tornou-se impossível entrar porque todos estavam à beira da porta, como se fossem arrebentar a qualquer hora para o corredor afora e engolir alguém desprevenido que não estivesse munido de um sobreaviso. Nesses dias todos, passei muito receosa. As pessoas, no entanto, pareciam não ver na cidade aquela voracidade.  Eles alimentavam-se de água, era mais que claro. Parasitas que começavam a se incubar em mochilas e bolsas. Quando atingiam a fase adulta, diante de grande abundância de nuvens, saiam para fora e abriam-se para o mundo, investindo pesado em corredores e qualquer espaço onde as pessoas não pisavam muito. Creio que era a desidratação quem os matava. Conforme secavam completamente, desapareciam. Mas o ciclo estava longe de terminar, já que eram recolhidos pelos mesmos hospedeiros intermediários que os haviam trazido.

Um dia, me lembro bem, deixei um desses por ali (descuido tamanho!) e meia hora depois haviam dez. A ciência com certeza deveria estudar tal forma de reprodução. Estava quase entrando em contato com a secretaria da saúde perguntando se não iriam decretar estado de calamidade pública, quando os guarda chuvas começaram a sumir. Eram sazonais, então! Março acabava e os levava embora.

Respirei com alívio. Novamente era possível circular pelos corredores. Em uma lanchonete normal, pedi um salgado qualquer. Mas o pesadelo estava longe de acabar... Olhei para o lado e novamente me assombrei: um monte de notas fiscais saiam de uma pequena máquina que não parecia capaz de cuspir tamanha quantidade de papeis.

Senti o meu braço se arrepiar, mas me mantive firme. Comi o salgado e fui jogar a embalagem dele no lixo. Dei um passo para trás. Olhei ao meu redor. O mundo seguia normalmente enquanto eu estava assombrada com a lixeira gigante. Aquela boca enorme cheia de itens descartáveis não era sazonal.  A mesma questão rondava a minha mente, enquanto guarda-chuvas coexistiam proliferando no sistema urbano: por que a praga de guada-chuvas não apareceu nos noticiários? Por que nos acostumamos tanto aos excessos?

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