28 de outubro de 2016

Por que temos medo do escuro


Temos medo do escuro porque não nos reconhecemos na própria sombra projetada no chão. Temos medo do escuro porque, quando pequenos, nos contam que é lá onde os monstros moram. Quando crescemos, entendemos que a hora do escuro é também a dos milhares de pensamentos e que eles viram as temidas criaturas da infância.

Temos medo do escuro porque é debaixo do tapete que está a poeira e, para limpar, é preciso vê-la. Além do mais, não podemos esquecer, o escuro é onde primeiro vemos, mas temos medo de retornar para o lugar de onde viemos. Temos medo também porque, mesmo às cegas, sabemos que o escuro é o que por último vemos.

Temos medo do escuro porque o escuro está em nós. Digo, literalmente. Nas pálpebras fechadas, no buraco do ouvido, na boca aberta, no umbigo, nas narinas e em outros orifícios. E não literalmente também. Já pensou se esses pequenos buracos negros aumentam e se tornam parte do escuro de que temos medo?

Temos medo do escuro porque é o que observamos quando descansamos, beijamos, meditamos e choramos. Temos medo do escuro, porque o que os olhos não veem o coração teme. Temos medo do escuro porque os melhores esconderijos e sustos eram nele. Tememos porque sabemos que ele vem, mas também que ele se vai. Temos medo porque não enxergamos além dele. Tememos porque toda luz provoca sombras.


Temos medo do escuro porque ele é a simplificação da vida, e não queremos modestidade. Queremos algo mais, queremos ver além do escuro. Queremos a luz, sem a sombra. Queremos os pensamentos, sentir o tapete, cegar ao sol. Poder ver o buraco, a cama deitada, o rosto beijado, as pernas cruzadas, a água derramada, o lugar secreto e o dia nascendo. Temos medo do escuro porque algum lugar tem de parecer seguro, e já tão cedo aprendemos a não temer a luz.  

9 de outubro de 2016

Confissões de uma autora assassina



Eu sempre quis matar alguém importante. Já tentei os mais comuns, mas nunca fui capaz de matar a personagem principal. Aquela que todo mundo ama. Aquela que todo mundo torce. Criaria a história mais envolvente do mundo só para que ela morresse no final. E o leitor ficaria com ódio de mim, como tantas vezes fiquei de muitos autores. Essa gente que foi muito mais corajosa que eu. Gente que assumiu: matá-la irá me doer, mas tornará essa história inesquecível.

Não. Não sei como ter, se tenho ou se treino essa maldade. Tanto tempo construindo a personagem, aplicando dramas durante a sua vida, fazendo ela passar pelas mais altas provas para tudo acabar em morte. Como eles conseguem? E toda aquela responsabilidade de matar o ser que você mais ama? É muito mais difícil escrever a morte do que a ler. Uma vez fiz uma das minhas personagens favoritas passar por um grande drama (não era a morte) e quase me afoguei em lágrimas.

Enquanto não apago a chama da minha história vou matando pelas bordas. Um personagem secundário aqui, outro terciário ali... mas acho que um serial killer já  nasce dominando a arte, não é mesmo? Ou talvez seja uma questão de sentimento. A gente sabe quando alguém vai morrer. Sente-se que é necessário matar. Como se notasse que é chegada a hora. Como se fosse o próprio Deus. Não consigo parar de pensar que pode ser assim conosco também. E se a arte imita a vida, então está explicado porque a personagem principal ainda não morreu.

6 de outubro de 2016

Tinha certeza de que seus olhos eram verdes



Verdes como esmeralda, verdes como um mar calmo num dia de sol, verdes como a grama bem molhada. Agora eu os vejo castanhos e fico em pânico. Como posso ter me enganado tanto? Mal a conheço e acabo de descobrir que a conheço pior do que imaginava. Mas a gente se engana com as coisas invisíveis e não com as visíveis. A menos que se esteja cego em todos os sentidos...  E eu estava cega todos esses dias quando a vi com seus olhos verdes que não estão mais aí. O mais curioso é que sempre os achei lindos! Pensava: que lindos olhos verdes aquela moça tem. Fiquei refletindo por minutos como eu fui ver olhos verdes no lugar dos seus. Nesse quesito não costumo me enganar, eles são a janela da alma. E é como se eu visse a sacada de um apartamento onde, na verdade, é uma casa.

Pensei que poderia ser uma questão espiritual. Por que verdes? Me diga qual é essa camada estranha que nos impede de perceber os outros, sentir suas dores, seus amores, entender que é gente como a gente não importa se são olhos de esmeralda ou chocolate. Você e esse verde que agora procuro insistentemente, como se estivesse mentindo para mim, e justo agora que estamos frente a frente! Como pôde fazer isso para me presentear com esses novos olhos? Não me sinto digna do castanho deles. Cultuei o verde como se ele fosse algo irrefutável. Fiz um altar, o cumprimentei, percebi sua presença antes de você chegar. O verde acenou para mim. Mas agora o castanho me chama à realidade. Seu rosto muda. É como se a minha máscara caísse ao perceber que o verde não está aí, que ele não vai voltar. Que o verde que vi é outra coisa…

Seu verde me lembra ausência e ele é a materialização da própria. Seu verde é despedida. É choro e também saudades. Seu verde é amor, seu verde é intocável. Quero conhecer a verdade por trás do verde que nunca existiu. Quero que me conte quem é e porque escolheu mentir sobre o verde. Quero que me diga porque acha que o verde a escolheu. Não me leve tão a sério. Eu não sei nada sobre você, apenas que tinha um verde que a seguia e que, um belo dia, parou. Eu também tinha olhos verdes que me seguiam, sabe? Seu verde é o mesmo daquela que amei. Que aconteceu? Não sei bem, mas me lembram seus olhos. Eram verdes até que simplesmente deixaram de ser. O que eu via, então, era apenas o reflexo dos meus. O que me diz? Seus olhos são mesmo verdes! Ah, é a luz...  Ah, é a sala e as paredes…  Ah, é que vai chover e aí eles ficam mais cheios de barro…

Engraçado. Há um minuto eu poderia jurar que eram castanhos. Como pode existir tanto verde no seu castanho, tanto castanho no seu verde? Já lhe disseram que seus olhos são lindos? Nunca vi nenhum mudar de cor assim. E se quer saber, não importa. É mesmo bom pensar que seu verde e o meu estão por aí escondidos, esperando o melhor momento para voltar e dizer que, na verdade, esse tempo todo estavam juntos em todos os lugares, com todos os verdes do mundo que andam sumindo por aí. Se quer saber, acho que um dia o verde vai deixar de ser ausência para se transformar em preenchimento. E vamos celebrar o verde de novo. Eu e você.

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