Por: Victoria Schechter
Hoje, são poucas as famílias que ainda conservam aquele
hábito de contar histórias para as crianças. Esse ritual foi substituído pela
reunião em volta da TV, que se tornou a principal responsável por transmitir
valores e padrões de comportamento aos adultos de amanhã. E quem melhor que
Walt Disney para fazer isso?
Mesmo que muitos ressaltem o caráter comercial das
produções Disney, suas adaptações de contos maravilhosos clássicos para as
crianças de sua época nada mais fazem que seguir a tradição dos Irmãos Grimm,
que também transpunham histórias medievais para seu contexto
histórico-cultural. E, além disso, não dá para negar a influência que a Disney
tem na sociedade ocidental contemporânea.
E não é de hoje: minha avó, do alto de seus 76 anos,
adora contar sobre a primeira vez que assistiu “Branca de Neve e os Sete Anões”
(no cinema) e quis ser igualzinha à primeira princesa do primeiro longa de
animação da história. Quem diria que, meio século depois, sua neta se sentiria
da mesma forma.
Quem nunca quis ser um personagem de ficção quando
criança? Cada um tem seu preferido e, como religião e futebol, isso não se
discute. São esses ídolos que modelam quem seremos no futuro, pois é
neles que nos espelhamos. Que responsabilidade, hein, Walt Disney?
Questões da comercialidade dos filmes da marca à parte,
comecei a pensar no quanto as princesas da Disney reproduzem a posição social
da mulher em sua época, a qual deve ser transmitida às meninas da próxima
geração. É gritante a diferença entre Branca de Neve, a primeira, e Elsa, do
filme “Frozen”, de 2013. Tentei analisá-las cronologicamente (e também seus
amados príncipes), considerando esse ponto de vista. Eis o que saiu:
1937: “Branca de Neve e os Sete Anões”. A primeira e a
mais submissa de todas as princesas. É boa, brinca com os animaizinhos da
floresta, canta feito um passarinho, obediente, faz serviço de casa (obrigada
pela Rainha Má ou não, já que a primeira coisa que faz na casa dos anões é uma
faxina) e não se aproxima dos homens (vide cena em que o príncipe aparece e
Branca de Neve foge feito um bichinho assustado). Ela não contribui em nada
para a resolução do nó na história. É a vítima passiva das circunstâncias, ingênua
e facilmente enganada. Quem salva o dia: o caçador, os anões e o príncipe –
homens.
1950: “Cinderela”. Cinderela é a favorita de muita gente,
mas também faz faxina e sofre nas mãos da madrasta e irmãs. A diferença é que a
Gata Borralheira é esperta o suficiente para seguir as orientações da Fada
Madrinha e realizar seu sonho (mesmo que este seja dançar com o príncipe). Passa
as outras para trás, com a ajuda de seus amigos ratinhos, cachorros, galinhas e
serviço completo, consegue experimentar o sapatinho de cristal e se casar com o
cobiçado príncipe. E, diga-se de passagem, esse príncipe é tão “zero à
esquerda”, que nem nome tem e só aparece em uma ou duas cenas.
1959: “A Bela Adormecida”. Apesar desse ser um dos desenhos
da Disney que acho mais bonitos, especialmente devido à trilha sonora tirada do
balé de Tchaikovsky, a ideologia não é lá essas coisas. Regredimos à princesa
indefesa. Aurora é criada de maneira superprotetora (compreensível) e se
apaixona pelo primeiro desconhecido que vê na estrada. Tudo bem que ele é o
Príncipe Felipe (cof cof), mas não vamos questionar a razão de ser dos contos
de fadas. Aurora sofre com seu destino: um casamento arranjado depois de
desobedecer as ordens de não falar com estranhos. Só não sabe que o marido é
justamente o bonitão do bosque, o que teria evitado muito drama. Ela não é, por
isso, totalmente passiva, mas apenas a vítima de circunstâncias fora de seu
poder. Quem resolve a história é, principalmente, o Príncipe Felipe, que é o
primeiro príncipe encantado a ter um nome (aplausos!!!), e as três fadinhas.
Muito parecido com Branca de Neve, não?
Estes três filmes formam uma primeira fase dos contos de
fadas, já que o próximo demoraria 30 anos para ser lançado. Neles, o que está
em jogo é a libertação de uma condição humilhante, não especificamente o amor.
No contexto da primeira metade do século XX, o casamento era a maneira mais
fácil para a mulher se libertar da proteção dos pais e se tornar adulta. Hoje,
essa mensagem não é muito bem-vista, mas não é possível dizer que os filmes
sejam pouco saudáveis, já que a mensagem da luta por liberdade está lá, mesmo
que sob uma ideologia desatualizada.
1989: “A Pequena Sereia”. Incrivelmente, quase no fim do
século XX, a ideologia continua muito parecida. Acho que o trecho a seguir,
dito pela bruxa-polvo, Úrsula (a melhor vilã da Disney, na minha opinião)
ilustra bem o que quero dizer:
“Tem razão, mas terá o seu homem. A vida é cheia de
escolhas difíceis, não é? (...) Você terá sua aparência, seu belo rosto. E não
subestime a linguagem do corpo! O homem abomina tagarelas, garota caladinha ele
adora! Se a mulher fica falando, o dia inteiro fofocando, o homem se zanga, diz
adeus e vai embora.. Não! Não vai querer jogar conversa fora?! É o que o homem
faz de tudo para evitar! Sabe quem é mais querida? A garota retraída. E só as
mais quietinhas vão casar!”
Oi?! E a garota cai nessa?! A perda da voz da mulher –
ainda mais uma sereia, figura mitológica que seduz justamente pela voz – é claramente
a perda de seu poder, sua ascensão, seu livre arbítrio. Ok, no final ela
conseguiu o que queria (o bofe e o mundo com que tanto sonhava), mas só porque
seu pai, não acostumado a ver a filha mimada se frustrar, a transforma em
humana. Mérito nenhum à sereiazinha “aborrescente”. Ah, e para compensar pelo
menos, a representação masculina no filme é ótima! Ao contrário da sua amada
inconsequente, Erick toma atitudes com a cabeça e, no fim, tem grande papel na
resolução da história.
1991: “Aladdin”. O protagonista agora não é mulher, mas,
ao contrário de ser vítima das circunstâncias e só fazer bobagens, Jasmim é bem
esperta! Ela questiona o casamento arranjado e chega a fugir de casa para
conhecer o mundo. Ela ajuda a salvar o dia e, assim como Aladdin, é uma heroína
da astúcia, não da força. Uma coisa que me chama a atenção é que, sendo esta a
primeira princesa da Disney a se mostrar um pouco mais emancipada e forte, o
cenário do filme é na cultura muçulmana, tradicionalmente conhecida por tratar
as mulheres como inferiores.
Obs.: A partir daqui, ninguém mais limpa o chão nem passa
os dias se embonecando!
1992: “A Bela e a Fera”. Agora sim! Bela é a primeira princesa
nerd! Adora ler, cuida do pai e rejeita o bonitão da cidade para se apaixonar
pela Fera - monstruosa, sim, mas com um enorme coração. Este é o primeiro filme
que mostra um amor adulto, algo que se constrói, não que acontece da noite para
o dia, algo que possibilita o crescimento de ambas as partes. Para completar,
Bela é quem salva primeiro seu pai, depois a Fera. Tudo bem que ela se mete em
encrenca ao tentar fugir e é salva pela Fera, mas a Disney não podia fazer uma
Fera assim tão fracote, não é? Tudo bem ser salva pelo macho uma vez ou outra,
fica até mais romântico!
Esse é meu filme favorito
da Disney de todos os tempos! Uma arte linda, uma trilha sonora inigualável e a
história mais cativante que já houve.
1994: “Rei Leão”. Novamente, a princesa-leão não é
protagonista, mas, como são animais, Nala está de igual para igual com Simba. E,
de fato, entre os leões, quem caça são as fêmeas! Nala nunca é comentada como
um símbolo de emancipação feminina como outras personagens da Disney, mas a
personificação dos animais permitiu essa representação no filme.
1995: “Pocahontas”. É uma história verídica (como
mostrado no filme “Novo Mundo”) e bastante parecida com a nossa “Iracema”.
Pocahontas é tudo o que Ariel deveria ser. Ela também vive no mundo da Lua e
não se encaixa entre os seus, mas, quando se apaixona por alguém pertencente a
outro universo, tem consciência de que é um amor impossível e, ao em vez de
escolher entre um lado ou o outro, tenta conciliar os dois e acaba, a curto
prazo, conseguindo. (Considerando apenas a metade da história mostrada pela
Disney, pois a versão realista é bem diferente). Aqui também o amor não é à
primeira vista. O que acontece é mais um fascínio pelo desconhecido, em que um
ensina o outro e ambos vencem seus preconceitos.
1998: “Mulan”. Ela é mulher, mas, não conformada com
isso, faz tudo que um homem faz também! Muito como Bela, sacrifica-se pelo pai
e, com sua esperteza, acaba salvando o país. Tudo isso em uma sociedade muito
repressora. Mulan é a Khaleesi das Princesas Disney! (E não é só porque também
tem um mascote dragão, claro.)
Acho que esse revestimento de masculinidade dessa mulher
(porque ela não é princesa) representa a libertação total feminina, que, daqui
em diante, pode ser e fazer o que quiser, até mesmo coisas de homem, e
continuar sendo feminina.
2009: “A Princesa e o Sapo”. Dez anos depois, vem a
primeira princesa negra da Disney! Afinal, já estava na hora! Tivemos inglesas,
francesas, alemãs, árabes, indígenas, chinesas, sereias, LEÕES... Este é o
primeiro filme também a se situar na realidade contemporânea. Para mim, talvez,
o filme perca um pouco da magia exatamente por isso: é direto ao ponto demais.
Tiana é uma garota urbana, trabalhadora e durona. Não é princesa de fato, mas
se veste como uma para uma festa à fantasia a que não queria ir. Só então
começa a magia no filme: quando encontra o sapo falante e acaba sendo também
transformada em uma sapa. Tiana não sonha com o príncipe (ao contrário de sua
amiga branca, rica e infantil); sonha, sim, com o seu restaurante e acaba esbarrando com o príncipe
no meio do caminho - um príncipe que nem é tão príncipe assim, diga-se de
passagem. Mais ou menos como em “A Bela e a Fera”, eles amadurecem um com o
outro e acabam se apaixonando mesmo como sapos. A moral da história: não
adianta construir a sua vida em torno do príncipe encantado, porque ele pode
acabar sendo mesmo só um sapo. Mas, por outro lado, não se deixe levar pelo
trabalho e as pressões do mundo, pois, apesar de tudo, o amor existe, afinal,
como Tom Jobim já dizia: “É impossível ser feliz sozinho.”
Com “A Princesa e o Sapo”, para mim, encerra-se uma
segunda fase, que gosto de pensar como a dos filmes de Allan Menken (o
compositor das trilhas sonoras de todos os filmes anteriores a partir da
“Pequena Sereia”). São personagens e contextos muito variados, mas, tirando o
filme de 1989, é possível perceber princesas mais contestadoras, inteligentes e
fortes, além do fato de, desde “A Bela Adormecida” ninguém mais passar horas se
embonecando ou fazer serviço de casa. Os príncipes, os modelos de objeto de
atração para as garotas, também estão mais parecidos com pessoas de verdade,
não com figuras idealizadas; alguém com quem se pode crescer, aprender e
melhorar.
Passemos à nova fase da Disney que está se saindo melhor
que a encomenda:
2010: “Enrolados”. O primeiro filme da nova linha de
desenhos Disney, com uma técnica maravilhosa e retornando aos contos de fadas clássicos.
A história de Rapunzel é, obviamente, outra de libertação, e ela é, com
certeza, a princesa mais desmiolada de toda a Disney (o que é, diferente de
Ariel, justificado, já que viveu toda a vida em uma torre). Mas o casal desajeitado
e pouco provável devolve a magia à história. Rapunzel não busca um príncipe,
sim um sonho: conhecer o mundo. Aqui, outra vez, repete-se a relação de
complementação do casal, não de submissão. Flyn salva Rapunzel, Rapunzel salva
Flyn e eles acabam se apaixonando no final, mesmo que Flyn não goste desse tipo
de coisa clichê.
2013: “Frozen”. Chegamos ao ápice da emancipação feminina
nas produções da Disney. O amor em Frozen não é entre um homem e uma mulher,
sim aquele entre duas irmãs – o mais relevante, ao menos. Além disso, temos
duas personagens femininas fortes: uma princesa e, pela primeira vez, uma
rainha! Elsa tem dificuldade para se aproximar das pessoas (o que fica
representado pela questão dos seus poderes e toda a coisa do gelo – metáfora de
sua frieza). Anna, a garota totalmente comum, sonhadora e desajeitada (ela cai
o filme inteiro!), não entende a irmã e se sente só, até que se apaixona à la
“Branca de Neve”. No fim, acaba que o príncipe encantado é o vilão e Anna acaba
se apaixonando por Christoph, o garoto simples com quem trilha sua jornada
(novamente, o amor construído). E temos aí a cena mais significativa de todas,
que me inspirou a escrever este texto: Anna é quem beija Christoph nos momentos
finais!!! Quer mais libertação que isso?! Já Elsa atinge sua felicidade por
meio do entendimento com a irmã, não pelo amor por um homem. Não significa que
ela não o queira, mas que não é necessário para que seja uma pessoa estável e
realizada. Este filme fala sobre solidão. Todos os personagens principais são
muito solitários e têm dificuldade para mudar isso.
Nesta terceira fase ainda em curso, as mulheres estão
longe de ser perfeitas e também se apaixonam por homens longe de serem
perfeitos (Flyn, um criminoso procurado, e Christoph, um garoto criado por
trolls que anda por aí com sua rena de estimação). Para mim, esta é uma
mensagem muito saudável para se passar às crianças, isto é: você não precisa
ser perfeito para ser feliz, porque, afinal, o que é perfeito nessa vida?