20 de junho de 2014

"Letting it go" - As princesas da Disney segundo o feminismo


Por: Victoria Schechter

Hoje, são poucas as famílias que ainda conservam aquele hábito de contar histórias para as crianças. Esse ritual foi substituído pela reunião em volta da TV, que se tornou a principal responsável por transmitir valores e padrões de comportamento aos adultos de amanhã. E quem melhor que Walt Disney para fazer isso?
Mesmo que muitos ressaltem o caráter comercial das produções Disney, suas adaptações de contos maravilhosos clássicos para as crianças de sua época nada mais fazem que seguir a tradição dos Irmãos Grimm, que também transpunham histórias medievais para seu contexto histórico-cultural. E, além disso, não dá para negar a influência que a Disney tem na sociedade ocidental contemporânea.
E não é de hoje: minha avó, do alto de seus 76 anos, adora contar sobre a primeira vez que assistiu “Branca de Neve e os Sete Anões” (no cinema) e quis ser igualzinha à primeira princesa do primeiro longa de animação da história. Quem diria que, meio século depois, sua neta se sentiria da mesma forma.
Quem nunca quis ser um personagem de ficção quando criança? Cada um tem seu preferido e, como religião e futebol, isso não se discute. São esses ídolos que modelam quem seremos no futuro, pois é neles que nos espelhamos. Que responsabilidade, hein, Walt Disney?
Questões da comercialidade dos filmes da marca à parte, comecei a pensar no quanto as princesas da Disney reproduzem a posição social da mulher em sua época, a qual deve ser transmitida às meninas da próxima geração. É gritante a diferença entre Branca de Neve, a primeira, e Elsa, do filme “Frozen”, de 2013. Tentei analisá-las cronologicamente (e também seus amados príncipes), considerando esse ponto de vista. Eis o que saiu:

1937: “Branca de Neve e os Sete Anões”. A primeira e a mais submissa de todas as princesas. É boa, brinca com os animaizinhos da floresta, canta feito um passarinho, obediente, faz serviço de casa (obrigada pela Rainha Má ou não, já que a primeira coisa que faz na casa dos anões é uma faxina) e não se aproxima dos homens (vide cena em que o príncipe aparece e Branca de Neve foge feito um bichinho assustado). Ela não contribui em nada para a resolução do nó na história. É a vítima passiva das circunstâncias, ingênua e facilmente enganada. Quem salva o dia: o caçador, os anões e o príncipe – homens.  
1950: “Cinderela”. Cinderela é a favorita de muita gente, mas também faz faxina e sofre nas mãos da madrasta e irmãs. A diferença é que a Gata Borralheira é esperta o suficiente para seguir as orientações da Fada Madrinha e realizar seu sonho (mesmo que este seja dançar com o príncipe). Passa as outras para trás, com a ajuda de seus amigos ratinhos, cachorros, galinhas e serviço completo, consegue experimentar o sapatinho de cristal e se casar com o cobiçado príncipe. E, diga-se de passagem, esse príncipe é tão “zero à esquerda”, que nem nome tem e só aparece em uma ou duas cenas.
1959: “A Bela Adormecida”. Apesar desse ser um dos desenhos da Disney que acho mais bonitos, especialmente devido à trilha sonora tirada do balé de Tchaikovsky, a ideologia não é lá essas coisas. Regredimos à princesa indefesa. Aurora é criada de maneira superprotetora (compreensível) e se apaixona pelo primeiro desconhecido que vê na estrada. Tudo bem que ele é o Príncipe Felipe (cof cof), mas não vamos questionar a razão de ser dos contos de fadas. Aurora sofre com seu destino: um casamento arranjado depois de desobedecer as ordens de não falar com estranhos. Só não sabe que o marido é justamente o bonitão do bosque, o que teria evitado muito drama. Ela não é, por isso, totalmente passiva, mas apenas a vítima de circunstâncias fora de seu poder. Quem resolve a história é, principalmente, o Príncipe Felipe, que é o primeiro príncipe encantado a ter um nome (aplausos!!!), e as três fadinhas. Muito parecido com Branca de Neve, não?



Estes três filmes formam uma primeira fase dos contos de fadas, já que o próximo demoraria 30 anos para ser lançado. Neles, o que está em jogo é a libertação de uma condição humilhante, não especificamente o amor. No contexto da primeira metade do século XX, o casamento era a maneira mais fácil para a mulher se libertar da proteção dos pais e se tornar adulta. Hoje, essa mensagem não é muito bem-vista, mas não é possível dizer que os filmes sejam pouco saudáveis, já que a mensagem da luta por liberdade está lá, mesmo que sob uma ideologia desatualizada.  

1989: “A Pequena Sereia”. Incrivelmente, quase no fim do século XX, a ideologia continua muito parecida. Acho que o trecho a seguir, dito pela bruxa-polvo, Úrsula (a melhor vilã da Disney, na minha opinião) ilustra bem o que quero dizer:  
“Tem razão, mas terá o seu homem. A vida é cheia de escolhas difíceis, não é? (...) Você terá sua aparência, seu belo rosto. E não subestime a linguagem do corpo! O homem abomina tagarelas, garota caladinha ele adora! Se a mulher fica falando, o dia inteiro fofocando, o homem se zanga, diz adeus e vai embora.. Não! Não vai querer jogar conversa fora?! É o que o homem faz de tudo para evitar! Sabe quem é mais querida? A garota retraída. E só as mais quietinhas vão casar!”
Oi?! E a garota cai nessa?! A perda da voz da mulher – ainda mais uma sereia, figura mitológica que seduz justamente pela voz – é claramente a perda de seu poder, sua ascensão, seu livre arbítrio. Ok, no final ela conseguiu o que queria (o bofe e o mundo com que tanto sonhava), mas só porque seu pai, não acostumado a ver a filha mimada se frustrar, a transforma em humana. Mérito nenhum à sereiazinha “aborrescente”. Ah, e para compensar pelo menos, a representação masculina no filme é ótima! Ao contrário da sua amada inconsequente, Erick toma atitudes com a cabeça e, no fim, tem grande papel na resolução da história.

1991: “Aladdin”. O protagonista agora não é mulher, mas, ao contrário de ser vítima das circunstâncias e só fazer bobagens, Jasmim é bem esperta! Ela questiona o casamento arranjado e chega a fugir de casa para conhecer o mundo. Ela ajuda a salvar o dia e, assim como Aladdin, é uma heroína da astúcia, não da força. Uma coisa que me chama a atenção é que, sendo esta a primeira princesa da Disney a se mostrar um pouco mais emancipada e forte, o cenário do filme é na cultura muçulmana, tradicionalmente conhecida por tratar as mulheres como inferiores.
Obs.: A partir daqui, ninguém mais limpa o chão nem passa os dias se embonecando!

1992: “A Bela e a Fera”. Agora sim! Bela é a primeira princesa nerd! Adora ler, cuida do pai e rejeita o bonitão da cidade para se apaixonar pela Fera - monstruosa, sim, mas com um enorme coração. Este é o primeiro filme que mostra um amor adulto, algo que se constrói, não que acontece da noite para o dia, algo que possibilita o crescimento de ambas as partes. Para completar, Bela é quem salva primeiro seu pai, depois a Fera. Tudo bem que ela se mete em encrenca ao tentar fugir e é salva pela Fera, mas a Disney não podia fazer uma Fera assim tão fracote, não é? Tudo bem ser salva pelo macho uma vez ou outra, fica até mais romântico!
 Esse é meu filme favorito da Disney de todos os tempos! Uma arte linda, uma trilha sonora inigualável e a história mais cativante que já houve.
1994: “Rei Leão”. Novamente, a princesa-leão não é protagonista, mas, como são animais, Nala está de igual para igual com Simba. E, de fato, entre os leões, quem caça são as fêmeas! Nala nunca é comentada como um símbolo de emancipação feminina como outras personagens da Disney, mas a personificação dos animais permitiu essa representação no filme.
1995: “Pocahontas”. É uma história verídica (como mostrado no filme “Novo Mundo”) e bastante parecida com a nossa “Iracema”. Pocahontas é tudo o que Ariel deveria ser. Ela também vive no mundo da Lua e não se encaixa entre os seus, mas, quando se apaixona por alguém pertencente a outro universo, tem consciência de que é um amor impossível e, ao em vez de escolher entre um lado ou o outro, tenta conciliar os dois e acaba, a curto prazo, conseguindo. (Considerando apenas a metade da história mostrada pela Disney, pois a versão realista é bem diferente). Aqui também o amor não é à primeira vista. O que acontece é mais um fascínio pelo desconhecido, em que um ensina o outro e ambos vencem seus preconceitos.  
1998: “Mulan”. Ela é mulher, mas, não conformada com isso, faz tudo que um homem faz também! Muito como Bela, sacrifica-se pelo pai e, com sua esperteza, acaba salvando o país. Tudo isso em uma sociedade muito repressora. Mulan é a Khaleesi das Princesas Disney! (E não é só porque também tem um mascote dragão, claro.)
Acho que esse revestimento de masculinidade dessa mulher (porque ela não é princesa) representa a libertação total feminina, que, daqui em diante, pode ser e fazer o que quiser, até mesmo coisas de homem, e continuar sendo feminina.  

2009: “A Princesa e o Sapo”. Dez anos depois, vem a primeira princesa negra da Disney! Afinal, já estava na hora! Tivemos inglesas, francesas, alemãs, árabes, indígenas, chinesas, sereias, LEÕES... Este é o primeiro filme também a se situar na realidade contemporânea. Para mim, talvez, o filme perca um pouco da magia exatamente por isso: é direto ao ponto demais. Tiana é uma garota urbana, trabalhadora e durona. Não é princesa de fato, mas se veste como uma para uma festa à fantasia a que não queria ir. Só então começa a magia no filme: quando encontra o sapo falante e acaba sendo também transformada em uma sapa. Tiana não sonha com o príncipe (ao contrário de sua amiga branca, rica e infantil); sonha, sim, com o seu  restaurante e acaba esbarrando com o príncipe no meio do caminho - um príncipe que nem é tão príncipe assim, diga-se de passagem. Mais ou menos como em “A Bela e a Fera”, eles amadurecem um com o outro e acabam se apaixonando mesmo como sapos. A moral da história: não adianta construir a sua vida em torno do príncipe encantado, porque ele pode acabar sendo mesmo só um sapo. Mas, por outro lado, não se deixe levar pelo trabalho e as pressões do mundo, pois, apesar de tudo, o amor existe, afinal, como Tom Jobim já dizia: “É impossível ser feliz sozinho.”
Com “A Princesa e o Sapo”, para mim, encerra-se uma segunda fase, que gosto de pensar como a dos filmes de Allan Menken (o compositor das trilhas sonoras de todos os filmes anteriores a partir da “Pequena Sereia”). São personagens e contextos muito variados, mas, tirando o filme de 1989, é possível perceber princesas mais contestadoras, inteligentes e fortes, além do fato de, desde “A Bela Adormecida” ninguém mais passar horas se embonecando ou fazer serviço de casa. Os príncipes, os modelos de objeto de atração para as garotas, também estão mais parecidos com pessoas de verdade, não com figuras idealizadas; alguém com quem se pode crescer, aprender e melhorar.
Passemos à nova fase da Disney que está se saindo melhor que a encomenda:

2010: “Enrolados”. O primeiro filme da nova linha de desenhos Disney, com uma técnica maravilhosa e retornando aos contos de fadas clássicos. A história de Rapunzel é, obviamente, outra de libertação, e ela é, com certeza, a princesa mais desmiolada de toda a Disney (o que é, diferente de Ariel, justificado, já que viveu toda a vida em uma torre). Mas o casal desajeitado e pouco provável devolve a magia à história. Rapunzel não busca um príncipe, sim um sonho: conhecer o mundo. Aqui, outra vez, repete-se a relação de complementação do casal, não de submissão. Flyn salva Rapunzel, Rapunzel salva Flyn e eles acabam se apaixonando no final, mesmo que Flyn não goste desse tipo de coisa clichê.

2013: “Frozen”. Chegamos ao ápice da emancipação feminina nas produções da Disney. O amor em Frozen não é entre um homem e uma mulher, sim aquele entre duas irmãs – o mais relevante, ao menos. Além disso, temos duas personagens femininas fortes: uma princesa e, pela primeira vez, uma rainha! Elsa tem dificuldade para se aproximar das pessoas (o que fica representado pela questão dos seus poderes e toda a coisa do gelo – metáfora de sua frieza). Anna, a garota totalmente comum, sonhadora e desajeitada (ela cai o filme inteiro!), não entende a irmã e se sente só, até que se apaixona à la “Branca de Neve”. No fim, acaba que o príncipe encantado é o vilão e Anna acaba se apaixonando por Christoph, o garoto simples com quem trilha sua jornada (novamente, o amor construído). E temos aí a cena mais significativa de todas, que me inspirou a escrever este texto: Anna é quem beija Christoph nos momentos finais!!! Quer mais libertação que isso?! Já Elsa atinge sua felicidade por meio do entendimento com a irmã, não pelo amor por um homem. Não significa que ela não o queira, mas que não é necessário para que seja uma pessoa estável e realizada. Este filme fala sobre solidão. Todos os personagens principais são muito solitários e têm dificuldade para mudar isso.

Nesta terceira fase ainda em curso, as mulheres estão longe de ser perfeitas e também se apaixonam por homens longe de serem perfeitos (Flyn, um criminoso procurado, e Christoph, um garoto criado por trolls que anda por aí com sua rena de estimação). Para mim, esta é uma mensagem muito saudável para se passar às crianças, isto é: você não precisa ser perfeito para ser feliz, porque, afinal, o que é perfeito nessa vida?


3 comentários:

  1. Simplesmente adorei a sua crítica/análise dos filmes com relação ao feminismo! E a Bela e Mulan sempre foram as minhas favoritas :)

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  2. Algumas coisas eu concordo,outras não...Acho que mesmo as princesas mais antigas tem lá a sua força,mas mostrada de maneira mais sútil e diferente.Elas resistem a pressões psicológicas absurdas,como bullying e maus-tratos por parte de quem deveria cuidar delas,e mesmo assim se mantem "mentalmente saudáveis",o que,na época em que foram lançados os filmes era uma realidade.Prefiro sim as histórias mais novas,mas,pra mim,Mulan sempre será a melhor rsrs ^^"
    Mas de modo geral,excelente texto,mesmo.
    ;****

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  3. Muito, muito bom! Só faltou a princesa Merida, de Valente!

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