Bernardo ainda sonhava com uma praia paradisíaca sob o sol escaldante quando o ruído infernal de seu despertador cumpriu o serviço que lhe foi encarregado. Ele não praguejou, pois sempre aprendeu a cumprir suas obrigações de cidadão sem reclamar. O sol agraciava a janela com sua luz matutina. Observou os quadros de "funcionário do mês" na parede, formando um mosaico previsível e sem sobressaltos, exatamente como era sua vida. O quarto arrumado, asseado, organizado e exemplar era um verdadeiro retrato de sua rotina.
Alinhou-se, pegou a pasta e partiu em busca do título de funcionário do mês de fevereiro. Faturou o prêmio nos últimos 42 meses e estava decidido a ganhar novamente. O elogio sutilmente debochado de seu patrão era o que alimentava sua alma. O cobiçado reconhecimento como o número 0186329, o que mais rendia lucros para a empresa, era a cenoura na ponta da vara para aquele burro de carga que corria desesperadamente mês após mês atrás de suas valiosas comissões.
Bernardo era o melhor corretor de imóveis da cidade, quiçá de todo o universo conhecido. Nenhuma coordenada possível do tempo-espaço possuía um profissional tão qualificado como ele. Gel no cabelo, camisa engomada, gravata amarrada, rosto lavado. Bernardo saiu de casa em sua religiosa peregrinação diária à Meca do proletariado, sem nem olhar para o lado. Não notou o tapume que havia aparecido, vizinho à sua casa, muito menos o canteiro de obras que se instalara no local. Nem teria interesse ou curiosidade para tanto, pois deveria chegar pontualmente às 10 horas no escritório.
Escreve, rabisca, grampeia, atende, telefona, marca, cumpre, planeja, relata, digita, calcula, acerta. Não assina. Quem assina é o patrão. Volta para o dormitório, às vezes conhecido como residência. O prédio ao lado brilhava como novo, imponente, erguendo-se muitos metros acima da cabeça de Bernardo, que nem tinha consciência dele.
A praia voltava como uma maré que subia em seu inconsciente, mas o alarme o puxara de volta à realidade. O sol já não tocava sua casa, coberta pela sombra do magnífico edifício envidraçado, que pulsava como um coração jovem. Bernardo seguiu seu código disciplinar à risca para se arrumar e partir novamente em sua pateticamente emocionante jornada rotineira.
Desviou, apressado, de um novo canteiro de obras no caminho. O relógio, assim como Bernardo, continuava seu ciclo, aproximando o ponteiro menor das 10 horas enquanto ele se aproximava do escritório. Em seu crachá, o número 0186329. Escrevinhou, ligou, agendou, teclou, obedeceu, estacou. O novo quadro de funcionário do mês foi pendurado. Apenas Bernardo correu para ver o detentor da glória, que, previsivelmente, era ele mesmo mais uma vez.
Foi até a sala do chefe para receber as congratulações de praxe que tanto o sensibilizavam. Ao fim do expediente, pegou o retrato para levar embora. Metódico, tinha de colocar em sua parede para alimentar o mosaico. Percorreu o caminho de volta apressado, carregando o prêmio nos braços. No entanto, sua rotina foi finalmente quebrada quando ele se deparou com um enorme prédio em frente à sua casa. O empreendimento tinha 50 apartamentos, dos quais metade ele próprio havia vendido.
Pela primeira vez em anos, abriu os olhos para algo diferente. Não tinha como chegar em casa para pendurar seu quadro. Ficou parado, sem saber o que fazer. Algo inédito aconteceu: ele abarrotou a camisa. Por uma boa causa, entretanto. Pulou o muro do único terreno baldio que havia ao lado de onde morava, aventurou-se pelo mato e, por fim, alcançou sua residência, no meio do quarteirão.
Gozou dos louros da vitória enquanto posicionava o 43º retrato em sua parede. Apesar do barulho de homens trabalhando, ele adormeceu contente com sua façanha. Mas sua felicidade, ou o que ele achava que era, não duraria muito tempo. Logo surgiu a imagem do mar ao pôr do sol, com as ondas batendo em rochas esculpidas pela água cristalina. Os pés de Bernardo estavam sujos de areia enquanto ele observava sereno as gaivotas que pousavam nas pedras. As aves alçaram voo assim que o despertador distribuiu sua fúria em acordes dissonantes que trouxeram o funcionário do mês de volta à sua casa.
Mais uma vez, cumpriu os afazeres matutinos para se preparar para mais um dia de trabalho. Penteou o cabelo, passou a camisa, fez o nó de sua gravata, pegou a sagrada pasta de cima da mesa e estava prestes a sair quando se lembrou que não havia como passar pelo prédio que se impunha entre a porta da sala e a calçada. Quando tentou pular o muro do terreno ao lado, descobriu um gigantesco empreendimento que bloqueava seu caminho. Ele estava rodeado, sem escapatória.
O relógio, diferente de Bernardo, continuava sua trajetória, impiedoso, apenas saboreando a imagem daquele homem desesperado e, pela primeira vez na sua vida, atrasado. Para todos os lados que ele olhava, um enorme prédio se erguia, impedindo sua passagem.
A respiração, ofegante, já era audível à distância. Cada vez que o homem arfava, sua face, cujos músculos, tensionados, compunham a figura horripilante de um ser perturbado, demonstrava mais agitação. Secou o suor que escorria pela testa. Imagens terríveis se sobrepunham em sua mente de forma caótica. Saiu correndo na direção oposta aos edifícios. Pulou tapumes de construção, passou por operários que levavam sacos de cimento para criar mais uma torre. Não sabia muito bem onde se encontrava, mas um pensamento insistente martelou sua cabeça até desaguar em palavras que saíram rastejantes de sua boca.
-Eles estão vindo. - murmurou, os olhos arregalados fitando seu interlocutor desconhecido. - Eles estão vindo me pegar!
-Quem está vindo, Bernardo? - falou uma voz firme e segura, que abria caminho por entre os ruídos conflitantes de sua mente. O desconhecido vestia um sobretudo, óculos escuros e um chapéu, que ocultavam sua face
-Todos! Todos eles! - levou as mãos à cabeça em um gesto de autoproteção. - Vão levar meus quadros embora! Vou me atrasar e não vão mais elogiar meu trabalho!
-E para quê você quer isso? Esse reconhecimento realmente muda algo em sua vida? Você está apenas servindo aos interesses de seu chefe, engrossando suas cifras enquanto se contenta com palavras falsas e ardilosas que não levam a lugar algum.
-Quem é você para dizer isso?
-Eu sou você. - respondeu, tirando o chapéu e os óculos para revelar a identidade. Seu rosto era exatamente idêntico ao de Bernardo. Ele assustou-se com a visão e ficou paralisado ao ver a semelhança. Era como se estivesse olhando para um espelho. O desconhecido, no entanto, não tinha o cabelo arrumado dele, nem suas roupas alinhadas, tampouco o olhar perdido e as pálpebras caídas. Ele tinha um aspecto jovial e esbanjava vivacidade com suas vestes despojadas e aparência confiante, muito diferente da expressão monótona de Bernardo. A figura desapareceu diante de seus olhos e ele pôde enxergar uma porta no muro de trás de sua casa.
Talvez nunca tivesse reparado nela, suja e mal cuidada, escondida em um canto. Dirigiu-se a ela, girou a maçaneta e deparou-se com uma trilha em meio aos prédios que não paravam de crescer. Bernardo não aguentava mais aquela visão. Sabia que tinha de chegar ao escritório para vender mais e mais apartamentos. Tinha metas a bater. Ele não podia perder o posto de funcionário do mês. Mas algo dentro de si parecia ter se libertado. Uma força misteriosa que buscava felicidade em sua forma mais pura e primitiva.
Ele sentia sua alma agitada com a porta que descobrira nos fundos de casa. Talvez estivesse desejando aquilo desde o instante em que começara sua empreitada pelo título que cobiçou nos últimos 43 meses. Mais um prédio estava levantado ao lado da porta e sua própria casa se tornara um canteiro de obras. Em breve, ele não teria mais nem sua parede cheia de retratos. Tudo o que ele prezava estava sendo tomado pelas empreiteiras que ganhavam dinheiro às custas de seu trabalho. Ele engoliu em seco.
Disparou pelo caminho até encontrar uma praia deserta, cujas rochas eram talhadas pela força das ondas e os pássaros revoavam cantando a tarde inteira. Bernardo olhou para trás e viu a cidade, sempre crescendo, abrindo espaço para novos arranha-céus que escalavam a paisagem. Afrouxou a gravata. Descalçou os sapatos finos e abriu os botões da camisa. Deixou a maleta cair sobre a areia. Longe dali, o número 0186329 já havia sido substituído pelo mais novo prodígio da corretagem de imóveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário