Não sei muito bem como aconteceu. Tudo era perfeito até que um dia acordei e meu dedinho da mão havia sumido. Não que ele não estivesse mais lá. Eu podia pegar coisas e mexer ele, porém não mais o senti novamente. Em fato, eu não senti muito problema nisso e nem achei que fosse me atrapalhar a falta de um dedo mísero. Dizia a mim que eu era um homem forte por saber lidar bem com algo estranho.
A esta altura de minha vida, já morava sozinho e não tinha a quem ligar correndo para contar aquele estranho caso. Sempre tive muito orgulho da minha casa e de como trabalhei muito como um professor comum, mas apenas no sentido de ser algo normal porque, na verdade, fui excepcional. Usava maconha às vezes e gostava de sair para beber até cair duro em semanas divertidas. Pensei que a falta do dedinho poderia ser algum colapso causado por esses pequenos impulsos que em nada alteram a vida. Na sala de aula, todos sabiam o quanto eu era fenomenal. Claro que não me importaria se alguns alunos dissessem o quanto me adoravam de vez em quando.
No fim, apesar do dedinho, fiquei quieto e esperei passar. Eu era um homem estudado e não poderia aparentar insanidade. Comecei a usar uma luva para ir ao trabalho. Dizia aos meus estudantes que tinha alergia à giz. Estava incomodado. Costumava ser o homem que ficava na frente de todos, atrás da porta, para me certificar que eu era supremo ali. No dia do dedo, uma aluna me olhou parecendo não estar muito convencida e riu sem motivo aparente. Era a segunda vez naquela semana. Na primeira, quando eu ainda tinha o dedinho, ela sorriu ao perceber a minha mania de não conseguir dar a aula de porta aberta. Fiquei incomodado com aqueles sorrisos. Alguém havia reparado e estava enfatizando o que eu queria esconder.
Nessa época eu tinha muitas mulheres, mas nunca liguei para as alunas. Não cabia bem falar com elas. Do contrário, conversava com milhares de pessoas e era muito popular. Obviamente eu não iria reclamar de ter uma namorada ou algum bom amigo para falar a qualquer hora e tomar uma cerveja quando estivesse um pouco triste. Mas eu sempre estava bem. Magnífico. Prazer, eu fui o homem imbatível... Até aquele momento.
No dia seguinte, acordei e olhei se estava tudo certo. Apenas o pequeno dedinho não aparecia. Meu pijama era de mangas compridas, pois fazia muito frio naquela semana. Ainda com sono eu o tirei para tomar um banho e, enquanto a água corria sobre mim, notei que não sentia ela escorrer em meu braço.
O braço havia sumido. Desesperei-me. Não porque fosse exatamente um problema, pois era possível ocultá-lo pela roupa, mas porque cada vez menos parecia uma alucinação. E o mais estranho era ver a mão, visível, sem o dedinho e com braço invisível também. Todos os dias, eu chegava em casa desesperado porque sabia que amanhã iria chegar e imaginava qual parte do corpo haveria de sumir. Às vezes eram partes próximas, como a mão e o dedo, e às vezes partes distantes como o pé e a orelha.
A outra mão não envolveu grandes questões, foi só dizer que ela também tinha sido ocupada pela alergia. Apesar do sumiço e de não ser capaz mais de sentir, eu ainda tinha coordenação e podia movimentar os objetos como antes. Tal fato, não atrapalhava minha eficácia e brilhantismo, eu dizia. No entanto, a orelha me tirou o cargo de professor mais respeitado, colocando-me no de palhaço, quando apareci dando aula com um gorro gigante (que a tampava). Comecei a usar o gorro, além das luvas. Então pensei em um emprego em que teria de trabalhar com roupas mais quentes. Sempre quis ser um pintor, um artista, mas disseram-me que era coisa de gente louca. No fim, fui parar em um frigorífico, sem contar a ninguém sobre o ocorrido.
Todos os dias, um novo membro sumia ou apenas uma parte dele ia embora. Logo eu estava usando também um cachecol. As pessoas me viam na rua e achavam que eu era um louco naquele calor de 30 graus. Nunca haviam me achado louco. Eu era um homem sério! Fora isso, para mim, não era nada sufocante. Afinal, eu não sentia temperatura, muito menos o toque das pessoas, pois o meu corpo já estava quase que completamente invisível.
Um dia, uma mulher veio até o meu apartamento. Fazia mais de mês que eu não convidava ninguém e ela chegou de supetão. Eu sabia que ela teria de ir embora, pois me restava apenas a face. Porém, depois iamginei que poderia deixar ela beber um vinho em troca de alguns beijos. Talvez isso ainda me desse o prazer que a maconha já não dava, porque as toxinas não mais ficavam em meu corpo.
Beijei-a muito naquela noite. Procurei imensamente pelo calor daquele contato, mas não foi bom e nem ruim. Foi uma mistura de tanto faz com quase pouco (e mais algo com um quê de agradável, para não dizer insuportável). Mandei-a embora quando ela quis outras coisas e a mulher ficou brava. Saiu batendo a porta e fazendo muito barulho. Nunca havia lhe recusado isso.
Quanto mais eu fazia, mais o buraco era maior e mais eu sumia. O que aconteceria quando eu sumisse por inteiro? Não me lembro o sobrenome da moça e dormi abraçado no travesseiro, apesar de só poder semnti-lo em meu rosto. No dia seguinte, a minha boca havia sumido. Pensei em ligar para o frigorífico e dizer que não poderia ir mais, que estava me demitindo. Afinal, era o certo a se fazer. Mas eu não podia mais falar. Tanto faz, senti que não precisaria de dinheiro já que não havia mais como comer.
Vou morrer! Eu disse a mim mesmo enquanto me olhava no espelho. O cachecol, luvas, sapatos, meias; tudo cobrindo o corpo e aquele pedaço do nariz para baixo. Pensei que ele deveria ser o próximo (ou os olhos). Será que precisaria respirar? Havia mais de 4 dias que não comia e não tinha sentido mudança alguma.
Não dormia mais. Apenas fechava os olhos e ficava assim até o dia raiar para parecer que eu ainda era um ser humano normal. Sempre quis ser alguém normal, que se adaptasse bem ao mundo. Quando o dia surgiu e vi a luz, olhei de maneira vesga para o nada embaixo dos meus olhos. Era isso; o fim. Ele não estava mais lá. Porém, nada aconteceu e eu ainda vivia.
Corri ao espelho. Era uma imagem macabra de um homem todo coberto e apenas com os olhos no rosto. Notei que uma pessoa que fosse tão bizarra assim não teria mais porque se esconder sobre uma pele falsa de roupas de marcas. Cuidadosamente e dolorosamente, comecei a despir-me. Chorei pela primeira vez e última naquele dia.
Conforme eu tirava os sapatos, as meias, a calça, a blusa, o cachecol e o gorro, pensava o quanto me desejava por inteiro. Não que fosse a primeira vez. Na minha vida inteira eu me queria inteiro, mas pela primeira vez eu não conseguiria fazer nada que suprisse momentaneamente essa vontade. Quando olhei no espelho, eu era uma face com olhos e apenas isso. O cabelo também já havia ido embora. Nada mais existia do queixo para baixo.
Em uma última tentativa de felicidade, olhei para as belas fotos que tirei nas viagens a trabalho. Porém, o tempo foi curto. Antes mesmo de notar que aquilo não era o desejado a ser visto, percebi que meu rosto começava a sumir. Em seguida, fiquei cego. Tudo era um grande espaço preto, mas eu ainda existia nele. E, o pior, eu sabia que ainda existia mas não poderia sentir, ver ou perceber isso porque não havia mais noção espacial. Eu não sentia o toque, eu não via e nem ouvia.
Deitei, sabe-se lá onde, e implorei que passasse logo, mas eu sabia que não ia passar. Então, a morte apareceu. Eu podia ouvi-la e vê-la naquela luz. Podia falar também com ela pelo simples fato de que ela não estava no mundo. Ela estava em minha mente.
- Olá, Carlos. - A morte disse um pouco sombria.
-Veio me buscar? - Perguntei com medo.
- Não, você vai viver eternamente. É que estive olhando o seu currículo e o senhor me parece a pessoa ideal para seguir com o meu posto. Quero me aposentar.
Eu levantei, incrédulo. Agora percebi que havia sentado no chão, ao lado da cama.
- Você também se tornou invisível como eu?
- Não e também não lhe interessa.
- Por que me escolher? - Perguntei.
- Ora, já faz muito tempo que você morreu. Pessoas assim ficam mais à vontade nesse cargo.
- Espere aí! - Eu a brequei na conversa imediatamente. - Está falando que eu sou bom para ocupar o cargo de morte?
- Sim. Tenho aqui em meus históricos que você nunca se importou com nada que, bem... O senhor sabe.
- Está dizendo que não tenho sentimentos?
- Está aqui que você nunca os procurou de verdade. - A morte respondeu.
- Claro que os procurei, o tempo todos eu os desejava. Eu estava querendo achar e tentei de tudo!
- Será que realmente tentou ou foi pelo caminho mais fácil? Você estava se procurando ou usando os outros para achar o que queria em alguém?
- Providenciava já que não encontrava. - Revidei.
- Não, Carlos. Na verdade, você desistiu de si há muito tempo. Perdeu tudo.
- Não perdi tudo ainda! - Estava quase implorando. - Não quero ser a nova cara da morte! Ainda me resta algo real...
- E o que é? - A morte dava se ombros.
- A vida. Ainda vivo... Certo?
- Por que você acha que ainda vive?
- Por que foi a única coisa que eu não posso tirar de mim. Pode um homem morto morrer? - Indaguei triste.
- Pode.
- Então pode um homem morto voltar a vida também! Dê-me uma chance de ser este homem.
A morte encarou-me. Embora não pudesse vê-la, sabia que ela estava pensando. Sua sentença foi simples, direta, como um aviso:
- Então pare de ficar atrás da porta e entre, homem invisível. A vida deve ser plenamente vivida por quem você é e não por aquilo que representa. Só morre aquele que vive.
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