12 de julho de 2015
O que eu sou ainda não tem nome
O universo é uma máquina de reciclagem. A cada cinco anos, o corpo substitui todos os seus átomos, sendo que um ser humano tem mais destes do que a Via Láctea tem estrelas. Em média, eu possuo alguns milhões de átomos que já pertenceram a cada pessoa que viveu antes de mim. Gandhi, Buda, Aristóteles, Asimov, John Lennon fazem parte dessa carapaça de carbono e água que serve como suporte para que meu ser imprima sua existência nesse universo.
A essência de todos os seres parece singular e única, como um lampejo em meio à escuridão. Vejo-me a princípio como um intervalo no tempo e no espaço. Sou, no entanto, composto por tantos, nas células, na psique e na língua, que me delimitar em um “eu” e ignorar o cosmos seria ingenuidade. Sou um misto da coletividade que me precede? Se não posso dizer que sou nem mesmo meu próprio receptáculo, o que eu poderia ser? Um conjunto de impulsos em um cérebro ou algum tipo de energia envolta em mistério? Sou nós todos, que também somos eu.
Assim como uma cachoeira tem sua água renovada a todo instante, o ser rompe com a embalagem para se revolucionar constantemente. Não há um invólucro que possa reter os espasmos de um ser em sua plenitude. A linguagem é a única maneira de superar a ausência de sentido da existência. Dá-se nomes, significados e objetivos.
A nomeação falha na tarefa de dar conta desse "eu" que me escapa por entre os dedos quando tento me apanhar em uma ideia. Avanço para além dos limites de meu corpo em decomposição. Desde que nasci, estou em um processo de putrefação que não pode ser evitado, apenas adiado. Faço as vezes de uma máquina de morrer. O que posso fazer para apreender minha existência é traduzí-la em tentativas de linguagem, por mais que esse exercício possa se desmanchar no ar devido à fragilidade.
Não há na língua portuguesa construção que permita expressar ou definir o ser simultaneamente em sua singularidade e em sua coletividade. O cosmos é um todo composto por várias partes interligadas entre si, de modo que não se pode dissociar um e outro. Somos um só à medida em que cada qual é um fragmento ao mesmo tempo em que não precisa de complemento.
Se compartilho dos mesmos átomos, do inconsciente coletivo, do éter universal, o que me resta para corroborar a singularidade é a linguagem, que define o mundo e a maneira pela qual existo nele. Crio e extinguo as barreiras da existência por meio não só da palavra mas de toda a expressão que se possa criar com ela. O que sou me escapa por um fio de pensamento, foge da vista e volta como o ser em sua complexidade, sem ser apreendido por signos alfabéticos sobre o papel.
Eu tento me capturar na língua, mas me encontro fora das palavras, meio que no espaço entre uma letra e outra, sob os pingos dos is. Meu ser se delineia por entre as fronteiras desse espaço chamado linguagem. Parafraseando Clarice, diria que André é pouco. O que eu sou ainda não tem nome.
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