18 de março de 2016

A Ordem das libélulas



Havia uma cidade em todo o reino animal na qual as religiões predominavam. A cidade era constituída de libélulas e entre seus habitantes existia um cidadão em especial chamado Wando. O jovem era ateu e como tinha ares de revolucionário, ele começou a enxergar diversos problemas na cidade causados pela religião.


Acontece que existiam várias ordens de diferentes cores. Porém, a Ordem que agora representava na cidade era a verde, esta, assim como as outras, queria determinar com quem as pessoas deveriam casar, como deveriam agir em determinados dias, como elas deveriam procurar Deus e até como achá-lo. Seria possível que um fator exterior interferisse tanto no interior?


Wando se revoltava com o ódio crescente que via de libélulas para libélulas. Afinal, elas eram tão similares: possuíam duas asas, uma cabeça e apenas tinham como ponto de divergência suas crenças. E isso bastava para desuni-las.


A população vivia para cumprir o que os cultos determinavam como importante, mas ninguém alcançava a perfeição esperada. Se alguém se destacava por sua abertura religiosa, então as outras libélulas o negavam e faziam prevalecer os seus pensamentos radicais e as suas crenças deterministas.


Chegou um momento da história das libélulas que parecia não haver mais saída, todos estavam direta ou indiretamente ligados às questões das Ordens e da existência. Não importava se você tinha uma opinião adversa, pois existia uma massa que a condenaria por não se encaixar nos padrões e fariam exercer a opinião geral, que não era sequer mais questionada e sim tida como uma verdade universal.


As Ordens se alteravam de acordo com os princípios que o governo eleito queria impor, mas a criminalidade, a educação precária e mau tratamento continuavam os mesmos.


O governo queria também enraizar uma verdade suprema: a de que ele era o melhor para todos, aliando isto a religião e vice-versa. Do outro lado estavam as libélulas tão alienadas que não percebiam a associação automática que faziam do bom governante com um bom cumpridor dos deveres religiosos.


Sei que parece estranho descrever toda essa situação, mas era nesse caos que viviam as libélulas.


Foi então que Wando entrou com uma ação no tribunal das causas religiosas, no qual ele exigiu a extinção das religiões. Inesperadamente a população o apoiou, cansados de viverem e de tamanha violência todos ouviram as provas que Wando reuniu de médicos, analistas, sociólogos e antropólogos. Todos o apoiaram em seu lema: “Se não houver religião a sociedade viverá de maneira saudável”.
No fim das contas a mudança se deu porque, vindo a calhar, o prefeito mostrou sua verdadeira face: ele era no fundo um ateu reprimido pelas forças governamentais exigidas para que chegasse ao poder.


A jovem libélula ganhou a ação e uma nova legislação sobre os cultos foi feita, nesta constava a proibição de qualquer tipo de prática religiosa. Naquele momento as libélulas apenas fizeram passar de um extremo ao outro: fazendo cumprir o determinado todas as seitas foram fechadas e a libélula que persistisse em praticar atos religiosos deveria retirar-se da cidade.


A intenção era a de criar uma sociedade em que não houvesse separações, nem brigas por distinções ideológicas. Todas as discussões seriam pautadas em aspectos científicos e os argumentos de uma discussão seriam reais e soldáveis, o Estado poderia enfim se desentrelaçar dos mandamentos religiosos.


Mas algo deu errado porque dentro de um mês a cidade se encontrava em um caos maior ainda. A violência piorou, as libélulas saíram desenfreadas em busca de uma liberdade que não sabiam ao certo como alcançar, de mistérios que não sabiam responder. Muitas que necessitavam de uma cura impossível perderam a fé, outras que haviam conseguido sair de vícios haviam voltado em outros piores.


O número de consultas em psicólogos e terapeutas aumentou e ninguém achava mais a razão de viver, entendia-se que nasciam para procriar e depois perdiam sua utilidade. Muitos começaram a se matar e entraram em loucuras próprias.


A ciência era usada de forma manipuladora, assim como a religião o fazia; todos achavam que seus argumentos científicos eram corretos e assim manipulavam as pessoas através de fatos concretos nos quais ninguém poderia duvidar.


Vendo a situação crítica Wando revogou a nova lei implantada, entrou numa nova ação expondo que as libélulas estavam perdidas psiquicamente sem suas devoções. A população o apoiou, o governo o confirmou em todas as suas teorias e a única coisa que o tribunal podia fazer-lhe era dar a ação ganha.


Wando entendeu que as libélulas tinham uma pretensão a impor e achar que apenas sua opinião era a verdadeira e que isso não é um problema puramente religioso. A cidade voltou a ter cor, porque as cores são mesmo assim; só o fato de você preferir uma não quer dizer que a outra seja errada. Além de que sem elas o mundo fica preto e branco.


Querer impor uma ideologia e fazer com que todos pensem como um o faz é o que as libélulas têm de fato de tomar cuidado. É o problema real de toda libélula.

4 de março de 2016

A eternidade num pé de feijão



Algum dia você já acordou com a sensação latente da frugalidade do tempo? Uma sensação de que todos os problemas são passageiros e que, dali a pouco, não iremos mais nos deparar com eles?


Então, você olha para as pessoas em uma estação de metrô, trem, ônibus ou até de uma rua, e acontece o mais completo discernimento; todas elas vão simplesmente desaparecer. Daqui a muitos anos, ninguém que estava nesse vagão lotado continuará aqui.


Vê aquela menina? Provavelmente é a primeira vez na vida que você a avistou, mas será também a última. No entanto, vocês compartilham um pedaço de tempo próximos. Por que você está compartilhando um lapso de minutos ao lado dessa pessoa, que provavelmente nunca mais verá? Não importa e também não há no que pensar. A única certeza é que um dia ela não estará mais aqui e o leitor ou leitora também não.


Então, nesse instante de lucidez, pensamos em quantas formas há para se viver. Procuraram tanto o elixir da vida eterna, sem perceberem que apenas morremos quando todas as pessoas que se lembrarem de nós não mais forem capazes de lembrar.


E eu não estou falando da menina, que colocamos a nossa atenção. Em alguns minutos, ela não se lembrará mais de sua existência. É por isso que existem livros, músicas, danças e todas as formas de arte. Pegamos emprestado a história do outro e do mundo para podermos viver.


Por isso que Beatles pode parecer tão próximo quanto Júlio Verne. Eles estão por perto porque estamos lembrando deles quase que o tempo todo. Então, eles vivem para alguns. Mas enquanto viverem, mesmo que para um, já será o suficiente.


E os mortos também podem renascer das cinzas. Um livro escrito ao acaso após tanto tempo é capaz de revelar um autor ou história que passam a ser lembradas e, portanto, existem.


Veja que não é necessário ser Picasso. Todos os dias somos consequências dos mortos e da frugalidade que agora você sente em suas veias. Somos a reposta que nossos pais deram para o mundo, e eles são de nossos avós, e avós de bisavós e bisavós de tataravós, até que sejamos todos de uma família só.


Claro que essa reposta para a vida eterna não é o suficiente. Afinal, se pensarmos que pode existir um dia em que a população toda da terra morrerá, então quem será eterno se não há alguém para recordar? Além do mais, não há como sentir que é preciso ser eterno se não há memória.




Claro que não pensamos muito em todas essas coisas, porque a vida chama para o agora a todo o momento. Dali a segundos, os problemas voltam a ser tão imensos e intensos como uma avalanche.


O incrível é: o que nos tira dessa transe de morte e alerta para a vida e o instante não são os problemas, mas os sentimentos. Não é estranho?


Por que algo tão fugaz e passageiro é capaz de nos trazer de volta? Sentimentos. Raiva, felicidade, amor, tristeza. Qualquer um pode senti-los a qualquer hora mesmo que durante um piscar de olhos. Assim, eles estão longe de durarem para sempre em uma vida, mas perto demais de serem universais e existências. Se todos os seres humanos que existirem podem senti-los, então eles são eternos.


Talvez nada seja melhor do que a eternidade para nos acordar da própria.


Mas por que precisamos acordar? Bem, deve existir um motivo para os sentimentos desejarem que vivamos o agora. Talvez a razão seja a procriação. Uma questão biológica; não deixar que o planeta se esvazie. Para isso, também nos alimentamos e é possível gerar alimentos a partir de outros. É preciso comer arroz, frutas, peixe. Plantamos aquela muda de pé de feijão na pré-escola para entendermos que é assim que funciona a vida. E você achando que era só um pé de feijão.


E por que nos dar a capacidade de procriar e viver, gerando alimentos a partir de outros, com o objetivo de que o planeta não se esvazie? Ora, não parece óbvio? Para que todos nós possam viver para sempre. A eternidade num pé de feijão.

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