Havia uma cidade em todo o reino animal na qual as religiões predominavam. A cidade era constituída de libélulas e entre seus habitantes existia um cidadão em especial chamado Wando. O jovem era ateu e como tinha ares de revolucionário, ele começou a enxergar diversos problemas na cidade causados pela religião.
Acontece que existiam várias ordens de diferentes cores. Porém, a Ordem que agora representava na cidade era a verde, esta, assim como as outras, queria determinar com quem as pessoas deveriam casar, como deveriam agir em determinados dias, como elas deveriam procurar Deus e até como achá-lo. Seria possível que um fator exterior interferisse tanto no interior?
Wando se revoltava com o ódio crescente que via de libélulas para libélulas. Afinal, elas eram tão similares: possuíam duas asas, uma cabeça e apenas tinham como ponto de divergência suas crenças. E isso bastava para desuni-las.
A população vivia para cumprir o que os cultos determinavam como importante, mas ninguém alcançava a perfeição esperada. Se alguém se destacava por sua abertura religiosa, então as outras libélulas o negavam e faziam prevalecer os seus pensamentos radicais e as suas crenças deterministas.
Chegou um momento da história das libélulas que parecia não haver mais saída, todos estavam direta ou indiretamente ligados às questões das Ordens e da existência. Não importava se você tinha uma opinião adversa, pois existia uma massa que a condenaria por não se encaixar nos padrões e fariam exercer a opinião geral, que não era sequer mais questionada e sim tida como uma verdade universal.
As Ordens se alteravam de acordo com os princípios que o governo eleito queria impor, mas a criminalidade, a educação precária e mau tratamento continuavam os mesmos.
O governo queria também enraizar uma verdade suprema: a de que ele era o melhor para todos, aliando isto a religião e vice-versa. Do outro lado estavam as libélulas tão alienadas que não percebiam a associação automática que faziam do bom governante com um bom cumpridor dos deveres religiosos.
Sei que parece estranho descrever toda essa situação, mas era nesse caos que viviam as libélulas.
Foi então que Wando entrou com uma ação no tribunal das causas religiosas, no qual ele exigiu a extinção das religiões. Inesperadamente a população o apoiou, cansados de viverem e de tamanha violência todos ouviram as provas que Wando reuniu de médicos, analistas, sociólogos e antropólogos. Todos o apoiaram em seu lema: “Se não houver religião a sociedade viverá de maneira saudável”.
No fim das contas a mudança se deu porque, vindo a calhar, o prefeito mostrou sua verdadeira face: ele era no fundo um ateu reprimido pelas forças governamentais exigidas para que chegasse ao poder.
A jovem libélula ganhou a ação e uma nova legislação sobre os cultos foi feita, nesta constava a proibição de qualquer tipo de prática religiosa. Naquele momento as libélulas apenas fizeram passar de um extremo ao outro: fazendo cumprir o determinado todas as seitas foram fechadas e a libélula que persistisse em praticar atos religiosos deveria retirar-se da cidade.
A intenção era a de criar uma sociedade em que não houvesse separações, nem brigas por distinções ideológicas. Todas as discussões seriam pautadas em aspectos científicos e os argumentos de uma discussão seriam reais e soldáveis, o Estado poderia enfim se desentrelaçar dos mandamentos religiosos.
Mas algo deu errado porque dentro de um mês a cidade se encontrava em um caos maior ainda. A violência piorou, as libélulas saíram desenfreadas em busca de uma liberdade que não sabiam ao certo como alcançar, de mistérios que não sabiam responder. Muitas que necessitavam de uma cura impossível perderam a fé, outras que haviam conseguido sair de vícios haviam voltado em outros piores.
O número de consultas em psicólogos e terapeutas aumentou e ninguém achava mais a razão de viver, entendia-se que nasciam para procriar e depois perdiam sua utilidade. Muitos começaram a se matar e entraram em loucuras próprias.
A ciência era usada de forma manipuladora, assim como a religião o fazia; todos achavam que seus argumentos científicos eram corretos e assim manipulavam as pessoas através de fatos concretos nos quais ninguém poderia duvidar.
Vendo a situação crítica Wando revogou a nova lei implantada, entrou numa nova ação expondo que as libélulas estavam perdidas psiquicamente sem suas devoções. A população o apoiou, o governo o confirmou em todas as suas teorias e a única coisa que o tribunal podia fazer-lhe era dar a ação ganha.
Wando entendeu que as libélulas tinham uma pretensão a impor e achar que apenas sua opinião era a verdadeira e que isso não é um problema puramente religioso. A cidade voltou a ter cor, porque as cores são mesmo assim; só o fato de você preferir uma não quer dizer que a outra seja errada. Além de que sem elas o mundo fica preto e branco.
Querer impor uma ideologia e fazer com que todos pensem como um o faz é o que as libélulas têm de fato de tomar cuidado. É o problema real de toda libélula.
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