─ Aaaaaaaah
─ Ah aaaah!
“Que lugar estranho”, Felícia pensou, “mal acabo de chegar e vejo 5 pessoas em uma roda gritando como se sentissem dor”. De fato, aquele lugar era totalmente novo para a bela garota de trança no cabelo e vestido rodado exaltado de flor. As nuvens mexiam-se depressa, quase correndo. Atrás do grupo estranho estava um castelo muito grande, onde se podia chegar subindo um morro.
Felícia observava o grupo de longe, detrás de uma árvore. Imaginou se seria o caso de ir até o castelo e passar por eles sem cumprimentar ou ser era melhor ser educada. Porém, cansada de esperar, saiu da árvore e começou a caminhar. Obviamente, o grupo continuava a gritar e só parou quando Felícia, estando muito perto, disse um agradável “Olá”.
─ Olá, menina bonita. Veio nos prestigiar? ─ Uma mulher falou, sem dar tempo para a menina responder. ─ Não deseja entrar no nosso clube? Estamos a gritar. ─ Ela puxou Felícia delicadamente pela mão e esta não ousou falar. ─ Eu sou a Professora, vejo que se comporta muito bem. Desejaria que muitos dos meus alunos assim o fizessem também.
─ Prazer em conhecer todos vocês. ─ Felícia tornou educada. Desejava apenas ir ao castelo sem ser interrompida. ─ Você é professora do quê?
─ Eu sou a Professora. Ensino bons modos. Diga-me, você gosta mais de correr e pular ou ficar sentada e de me ouvir falar? ─ A mulher indagou.
─ Ora, gosto mais de correr e pular. ─ Felícia sorriu.
─ Pois deveria preferir sentar e ouvir! ─ A mulher a repreendeu, tocando em seu ombro e fazendo com que Felícia sentasse.
Mais uma vez, Felícia olhou para o castelo, parecia ainda mais belo agora que ela não poderia ir até lá tão rapidamente. Olhando para o resto das pessoas, ela perguntou:
─ O que esse clube faz?
Um homem respondeu todo risonho.
─ Somos o clube do abuso! Estamos treinando o abusar.
“Que coisa mais estranha”, Felícia tornou a pensar.
─ E isso é bom?
O homem explodiu em gargalhadas diante daquela pergunta.
─ É claro que é! Ajudamos a manter a ordem. Se as pessoas pudessem fazer o tempo todo o que elas desejassem, o mundo seria um caos. Certo?
─ Entendo. ─ Felícia concordou. ─ E por que gritar?
─ Gritamos para nos sentir mais poderosos. Tente você também!
─ Está bem, posso tentar. Porém, antes, quem é você? ─ Felícia torceu as sobrancelhas.
─ Quem sou eu? Ora, eu sou o Familiar. Fique para nosso almoço e comece a gritar! Aaaaah! ─ O Familiar falou.
Todos os cinco começaram a gritar. Felícia olhou para o castelo, sem saber como dizer que desejava ir para lá.
─ Vamos! ─ O Familiar tornou a falar. ─ Eu sei o que é melhor para o seu futuro. Ou você não confia em mim que sou tão familiar?
Felícia se engasgou diante daquela frase. Deu uma nova olhada para o castelo, mas começou a gritar.
─ Aaaaaaah! Aaaaaah! ─ Felícia notou que todos os cinco gritavam e parou. ─ Não me sinto muito bem.
─ Ah! É sempre assim no começo. ─ Outra mulher respondeu. ─ Você tem muitos compromissos comigo.
─ E quem é você? ─ Felícia tornou a perguntar, notando que havia mais duas pessoas ali que ainda não haviam se apresentado.
─ Eu sou o Desconhecido.
─ Mas isso não é nome de homem? ─ Felícia olhou com curiosidade para a mulher.
─ Ora, tão pequena e já tão abusadora! ─ A mulher chamada Desconhecido riu-se. ─ Pois saiba que sou muito essencial.
─ Mas como, se nem a conheço? ─ Felícia tentou se levantar. Queria muito sair de lá.
─ É por isso mesmo que sou tão poderosa. As pessoas têm medo de mim. Afinal, nada pior do que imaginar o que o Desconhecido irá pensar! Ah, sim! Desconhecido é bem pior do que o Familiar!
A mulher Desconhecido tornou a calar.
─ Entendo. ─ Diante dessa frase e silêncio, Felícia sentiu medo. Desconhecido não era muito dada a apresentações e nada mais falou. Por isso mesmo, era tão fácil temê-la. O que ela estaria pensando sobre o fato de Felícia não querer gritar?
Tentando mudar de pensamento, Felícia olhou para o penúltimo integrante do clube do abuso.
─ E quem é você?
─ Eu sou o Amor. ─ O homem disse todo inflado.
─ E o Amor também pode entrar nesse clube? ─ Felícia assustou-se.
─ Claro que sim! Fui um dos primeiros a entrar. ─ O Amor riu. ─ Eu abuso porque amo! Não é culpa minha que as pessoas se deixem abusar por mim. Que tal, agora? Sente-se melhor para gritar? Aaaaaaah! ─ O Amor gritou. ─ Vamos, grite também! Ou você não me ama?
Felícia pensou. Ora, é claro que amava o Amor.
─ Mas o amor não deveria abusar. ─ Ela imaginou e falou, sem querer em voz alta.
─ Ah, mas até o Amor pode trazer sentimentos ruins. Todos podemos errar. São os outros que não podem abusar. Eu amo e sou amado por você, então tenho esse direito. Vamos, grite!
─ Já grito. Deixe-me ao menos ser apresentada à última pessoa dessa roda. Afinal, a Professora me ensinou a ter educação. ─ Felícia piscou para a Professora, que sorriu orgulhosa. Logo depois ela olhou o castelo. Quanto tempo mais aquilo iria durar?
─ Eu sou a Chefe. ─ A última mulher falou.
─ Chefe de quem? ─ Felícia questionou.
─ Chefe de tudo! ─ A Chefe sorriu.
─ Você é chefe de mim? ─ Felícia não estava entendendo mais nada.
─ Claro que sim. Por isso digo que você deve gritar, não há porque parar o trabalho. ─ A Chefe olhou profundamente para os olhos da menina. ─ Ou você não quer crescer e se tornar uma profissional ainda melhor?
─ Melhor no quê? ─ Felícia se sentia cada vez mais estranha ali.
─ Ora, melhor em se abusar! ─ A Chefe esperava a reação de Felícia, que olhava para os cinco sem perceber quem eram verdadeiramente. ─ Por que você acha que entrou nesse clube do abuso?
─ Eu não entrei por que quis. ─ Felícia balbuciou. ─ Na verdade, eu estava indo para o castelo e vocês me fizeram ficar.
─ E prova maior não há de que é você a maior abusadora do clube do abuso! ─ A Chefe gargalhou. ─ Viu só, acabei de te fazer subir no cargo.
─ Mas eu não queria esse emprego! ─ Felícia sentia as lágrimas brotarem em seus olhos. ─ Estou sendo abusada por vocês! Não sou uma abusadora… Não deveria estar nesse clube.
─ Felícia, estamos abusando de você porque foi você primeiro quem se deixou abusar. É a máxima regra do clube do abuso; só entra e é abusado, quem está se abusando. ─ A Chefe sorriu. ─ Sei disso porque sou a sua chefe. Fico olhando tudo o que não deveria pensar e todas as vontades que sente e não deveria ter. Sei, por exemplo, que deseja ir ao castelo, e não ficar aqui. Mas lhe digo que precisa ser educada.
Vendo que a menina nada falava, a Chefe sorriu.
─ Olha, se isso te deixa feliz, vou nomeá-la a rainha do abuso!
─ Não quero ser a rainha do abuso! ─ Felícia chorava. ─ Não quero ser abusada e nem me abusar. Estou indo embora!
Felícia saiu correndo o mais rápido que pôde do grupo. Enquanto corria, podia ouvir o clube do abuso gritar. Eles eram bons nisso, pois haviam treinado a vida inteira:
─ Você vai perder o cargo que todos sonhavam, Felíciaaaa! ─ A Chefe gritou.
─ Onde estava todo amor que você disse sentir por mim?? ─ O Amor gritou.
─ O que os outros vão pensar quando você contar que saiu do clube? ─ Gritou a moça Desconhecido.
─ Mas nós crescemos juntos e você nunca duvidou de mim! ─ Argumentou o Familiar, aos berros.
─ Não foi assim que você foi ensinada! ─ A Professora insistiu enquanto a saliva pulava de sua boca.
Mas os gritos foram, aos poucos sumindo. O coração de Felícia foi se enchendo de paz. Quando chegou perto do castelo, notou que ele era ainda mais lindo do que imaginou. Ao abrir a porta, acordou.
O texto “Clube do abuso” foi inspirado após a apuração da matéria “Amiga, você está em um relacionamento abusivo”.
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