27 de julho de 2014

A besta do -2

Não estranhe se eu começar esse texto absolutamente do nada. Mas... O quão besta você é para ler até o final? Escritor é mesmo um bicho estranho e besta, assim como todos os outros seres humanos de todas as áreas. Mas o que é um escritor?

Não dá em árvore, que nem tia que pergunta mais da sua vida amorosa do que do tempo, mas também não é raridade, como encontrar um trevo de quatro folhas (apesar de ele ser encontrado em diversos pingentes, amuletos e... Enfim, acredito não estar mais convencendo ninguém da raridade). Mas ser escritor é isso.

É quando dá uma coceira e a gente precisa começar de qualquer jeito, nem que seja só para começar desse jeito. Ser escritor é escrever sobre aquilo que ninguém imaginava que renderia um parágrafo que pudesse despistar tanto a atenção ou não ter problema em indagar o quão besta o leitor seria se continuasse.

É declarar, do nada, que ser escritor é encontrar várias bestas por aí e descrevê-las. Inclusive você mesmo. Uma viva a todas as bestas do universo e à besta do escritor.

Mas vamos exemplificar, pois tudo fica mais fácil com exemplo. Porém, se permitem uma reflexão antes, queria dizer que deve ser por isso, aliás, que sempre que você fala sobre como sua vida é ruim ou como errou em algo, alguém consegue dar um exemplo de como a vida do outro é muito pior ou como o outro conseguiu sentar mais ainda na merda.

Na verdade, são dessas bestas que eu quero falar, não mais especificamente do escritor. O escritor é apenas uma delas. Assim, para esclarecer, eu preciso contar algumas coisas. Preciso dizer que fui ver a peça “A Besta”, no Teatro Gazeta.

E a este momento você deve estar pensando que finalmente ficou possível esclarecer a relação disso com tudo que eu tenho dito aqui. Não é. Algumas vezes, uma coisa só vem à tona porque é puxada por outra. Então, vamos supor duas situações diferentes.

Em uma delas, você é a própria besta que foi assistir à peça. Na outra, você encontra uma besta nos bastidores. Na primeira situação, é fácil entender o que a peça quer dizer. Existem muitas bestas por aí, ou o que as pessoas classificam como bestas. O que não quer dizer que elas não deixam de ser necessárias e felizes.

E existe outro tipo de besta, que é a besta que também não se reconhece como besta, mas que, nem por isso, deve se submeter às bestialidades da primeira, desistir de suas besteiras ou achar que não é necessária.

Quem assistir à peça verá. E verá também muitas bestas nos bastidores e uma em você. Uma besta que não leva muita coisa a sério, que é feliz independente de qualquer coisa e ainda assim consegue resultados.

E também verá a outra besta, a besta sisuda, que é pragmática, que acredita realmente em suas besteiras e também consegue chegar lá, sem precisar se redimir ao que ela pensa que é besta no mundo.

Qual das duas está correta? Sinceramente, penso que as duas. Mas qual das duas você tem acentuado mais dentro de você? Vamos para a segunda situação, a situação em que você encontra a besta nos bastidores.

Às vezes não podemos evitar nos sentirmos inegavelmente bestas. Mas lembre-se daquela história velha de que sempre tem alguém que conseguiu ser mais besta que você. E isso não é nenhum tipo de afirmação para se sentir superior. Isso é um fato.

Então, lá estava eu no elevador pensando o quão besta era por acentuar pequenos problemas, quando vejo um besta ao meu lado. Nosso papo poderia ter começado com algo do tipo: “Olá, quão besta você acordou hoje?”. Mas não havia diálogo com aquele homem, porque no exato minuto ele era uma besta alarmada.

- Chegou no -2??? - Ele perguntava enquanto a porta do elevador se abria e a mulher dele falava com a cabeça girando em negativa.

Nesse momento, eu entrei no elevador.

- Eu não aguento mais! Ninguém aqui sabe me informar, eu já subi e desci umas 10 vezes com esse elevador e não chego no -2.

E, sim, ele era uma besta puta. Puta da vida, para esclarecer.



Meu pai começou a explicar que o elevador finalmente estava descendo para o -2, porque estava marcado na porta. Confesso que era um elevador diferente e não muito fácil de entender. Mas, enquanto a porta estava quase fechando, lá estava ele do lado de fora do elevador apertando o -2 novamente.

- Entre! O elevador vai fechar! - A mulher berrou. E ainda bem que berrou, se ele já estava daquele jeito por não conseguir chegar ao -2, imagina o que faria se a porta do elevador fechasse e demorasse para chegar o outro. E imagina se ele ficasse sozinho e jamais chegasse ao -2, ou chegasse e sua mulher não estivesse lá e ele não a encontrasse nunca mais.

Mas, por sorte, ele conseguiu entrar porque meu pai segurou a porta. E entrou furioso, berrando aos quatro ventos que não conseguia chegar ao -2, embora já estivesse descendo até o -2.  Quando o elevador parou no -1, que era onde eu desceria, ele desceu também.

Repetindo, era o -1. Aquela situação já estava me incomodando e eu queria pedir que a besta dele parasse de dar coices e ouvisse um pouco.

Portanto, mesmo comigo, meu pai, minha mãe e sua mulher falando que aquele era o -1 desde que o elevador parou, ele desceu furioso. Sua mulher desceu também para puxá-lo para dentro enquanto tentava manter a porta aberta.

Meu pai colocou a mão na porta novamente para que não fechasse, enquanto tentava explicar ao cara que era só esperar a porta fechar e o elevador desceria até o sagrado -2. Ele chegaria ao seu destino e poderia contar a todos como tinha enfrentado o perverso elevador para que pudesse alcançar a glória do -2.

Não sei se um dia ele irá rir disso, espero que sim. Enquanto a porta fechava atrás de mim, pensei que ele podia muito bem ter utilizado a escada, que se encontrava ao lado. Veja bem, se você não sabe lidar com algo complexo e rápido, tente algo fácil e lerdo. Você vai chegar lá.

E então, eu pensei em todo o caos, no qual faço o meu cérebro quase se matar por ter que descer ao -2 e não conseguir chegar lá com facilidade (por mais que seja a coisa mais simples do mundo). Respirei aliviada de certo modo - tenho que admitir, mesmo que isso acarrete em julgamentos -, porque a minha besta interior tem uma forte tendência de causar com coisas simples, mas não chega ao nível daquele cara.

Quando encontrei essa besta, nem que tenha sido besta por alguns segundos, pensei que nem sempre a gente é tão besta quanto parece. O importante, na verdade, é saber que a besta está lá. É tentar dominar a besta que não quer nada com a vida ou a besta que leva a vida a sério demais.

E eu pensava “graças a deus que não alcancei ainda esse nível de bestialidade”. Foi quando meu pai disse:
- Vocês reclamam que eu sou estressado, agora acho que sou até bem calmo.

 E eu percebi que a besta dele também estava se olhando no espelho e dizendo algo como: “Não comece a me deixar guardada no estábulo”.

Que a besta então, reine com sabedoria e que tenhamos conhecimento de que ela está lá. Não adianta se iludir e dizer que ela não está. Ser besta é bom às vezes. O importante é saber lidar com ela.

O importante é não nos crucificar só porque carregamos a besta às vezes e continuar, mesmo que ela até tenha apelidos ruins como “estresse”, “raiva”, “preguiça”, “ciúme”, “descompromisso”, “maldade”, etc.


Pois é, cada um sabe da besta que cuida e até que nível ela é necessária. O que é um escritor? Alguém capaz de falar dessas bestas.


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