1 de setembro de 2014

24h sobre 4 rodas

Por: André Cáceres e Bruna Meneguetti 



“Caramba! Olhem essas casas, nem parece que estamos em São Paulo!”, comentou um dos 33 mil taxistas da cidade, ainda capaz de se encantar com a metrópole na qual percorre 200 km por dia há 13 anos. Em pleno sábado, ele falava o que vivia pensando para os dois jovens jornalistas, enquanto todos da mesa esperavam uma farta feijoada.

Seu nome é Julio Nunes de Albuquerque, tem 53 anos e é mais conhecido como Julião. Ao longo do almoço ele despejava diversas histórias sobre lugares de São Paulo, conhecimentos adquiridos porque “nem sempre a gente acerta o time de futebol do passageiro”.

“Reportagem sobre o dia de um taxista? Interessante", é o que pensavam o filho, a mulher e, provavelmente, o que pensa o leitor agora. Porém, mais que interessante, a figura de Julião é capaz de rir em sua essência com um brilho infantil na face e incentivar uma conversa longa. Isso tudo na mesma facilidade em que pode tornar-se sério ao deparar-se com um passageiro sem muitas palavras. O taxista parece um rio que corta a cidade e recebe vários afluentes, levando-os para outros lugares. Melhor metáfora não se enquadraria.

Quando Júlio foi demitido de uma grande corporação e comprou seu táxi, 13 anos atrás, não poderia imaginar que seria uma espécie de psicólogo com os passageiros e babá de idosos enquanto aguardava pacientemente eles terminarem suas consultas no hospital.

Também não previu que se tornaria administrador assíduo de seu dinheiro – apesar de ter sido formado em economia, nunca soube economizar -, homem perspicaz nas escolhas de peças de automobilísticas, espião de mecânicos desonestos que fingiam consertar o carro e, principalmente, um aluno da vida.

“Quando eu estava na faculdade, me disseram que aquilo não adiantaria de nada e a vida sim era a melhor professora. Hoje eu sei o quanto aquela frase era verdadeira”, disse, enquanto o filho falava também sobre o aplicativo de táxi que instalou para o pai.

“Comecei a usar no começo desse ano. É uma loucura, se deixo ligado, as pessoas me acham e solicitam uma corrida comigo. No começo foi difícil, mas descobri que era apenas uma questão de aprender a trabalhar com ele”, Julião diz empolgado, lembrando também da época em que não havia celulares com internet ou GPS e ele tinha de consultar guias.

Inês, Julião e Murilo ao lado do táxi
“Meu GPS era a minha mulher”, contava, “Ela era minha tradutora também. Até hoje quando entra algum gringo no meu táxi, ligo para ela. Porém, também posso ligar para o meu filho, que faz a mediação.” Ri matreiro enquanto o filho sorri sem jeito. Murilo parece não gostar muito da ideia de ter seu inglês colocado a prova de maneiras tão súbitas.

“Uma vez me disseram: O filho de um taxista estuda na escola Pueri Domus?”, lembra Julião, buscando o olhar companheiro da mulher. A família inteira se retrai em uma postura incomodada, o assunto do preconceito não é dos mais agradáveis e, para manter o filho em uma escola particular, tiveram que economizar em muitos outros setores.

“As pessoas não sabem, mas na época em que existiam oito mil taxistas em São Paulo, eles podiam ser muito ricos, possuindo casas em diversos lugares”, explica. Julio continua a conversa e é interrompido pela mulher, que relembra o fato de a própria família já ter tido um padrão de vida alto antes de perderem os empregos. Junto, o casal chegou a conhecer e percorrer todo o litoral do país, fazendo também uma breve viagem para o exterior. Inês Romera mostra no semblante um misto de contentamento e arrependimento: “Talvez se não tivéssemos viajado tanto e guardado um pouco mais…” – Não termina a frase.

Enquanto o belo prato de feijoada chegava, ela ajudava Júlio a lembrar de muitas histórias. Em algumas, revela uma ínfima ponta de ciúmes enquanto ele conta casos como o da prostituta que quis pagar a corrida ‘de outro jeito’ e ele, obviamente, não aceitou. “Se aceitou, também não vai contar agora”, diz Inês, provocando um eco de risadas no restaurante.

Outros casos interessantes também surgem na conversa, como o da mulher que seguiu o marido e descobriu uma traição, o do passageiro insuportavelmente fedido que não tomava banho e fez questão de pagar uma corrida de 98 reais da Aclimação até Pirituba, e um dos três assaltos que Julião já enfrentou, onde pensou que seria mantido como refém. “Mas, por sorte, o ‘dono da boca’ mandou me soltar.” O motivo? O pai dele também era taxista.

E, se a profissão já evitou muita desgraça, também afastou falsos amigos. A mulher nos conta que encontraram sem querer antigos colegas de trabalho, em uma das poucas vezes em que se permitiram ir ao um restaurante caro comemorar o aniversário de casamento. “Quando eu falei que tinha virado taxista, todos da mesa nos ignoraram. Apenas um homem continuou conversando com a gente. Era um bom homem.”

O preconceito aparecia rebatido na face de pai, mãe e filho. Os jornalistas que aqui escrevem saíram incapazes de distinguir se o objetivo havia sido alcançado; entraram imaginando que sairiam de lá com apenas uma história de vida, mas saíram com vários pitadas de outras histórias. Desde a primeira passageira, da qual Júlio nunca havia se esquecido, até o ponto em que estava em sua vida atualmente, era impossível separar as suas narrativas da história de sua mulher, seu filho e de vários outros passageiros.

Seus dias eram, na verdade, um entrelaçamento de pessoas que viviam os seus dias dentro do dia dele. Seríamos todos assim também? Esse era o questionamento dos repórteres quando chegavam à estação de metrô enquanto a noite caía, guiados por um singelo e sorridente taxista.

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