20 de setembro de 2115
Quem sou eu? Penso que estou ficando louco. Neste momento desci ao porão para escrever e permaneço debaixo de uns toldos, ao lado de baratas e ratos. Essa folha é um pouco pequena demais e, por isso, minhas palavras estão tão miúdas. Mas é a primeira que vejo em 10 anos um lápis! Não o via, desde que baniram o coitado. Mas o que pode fazer um lápis? Muito. O lápis é símbolo de revolução. Porém, já estou velho demais e cansado para isso.
Lembro-me daquele outono. Provavelmente, seria a última apresentação de dança de Merlly e de muitas outras. A minha amada estava tão nervosa. Sua apresentação foi divina, mas poucas pessoas estavam lá para ver a última dança. Todos tinham muito medo. Naquele dia noticiaram na rádio que não passariam mais músicas e todo o tipo de arte deveria ser extinta. Quando Merlly terminou, ela caiu sobre o palco e desabou em choro como nunca vi na vida.
Tudo havia começado gradativamente. Primeiro as instituições não davam suporte algum ao teatro. Depois as pessoas pensavam que não valia a pena investir em histórias “bobas". A mentalidade de que o tempo era precioso para ser usado com coisas que aparentemente não tinham relação útil com a vida foi sendo cada vez mais impregnada. Não era bem visto aquele que fazia faculdade de artes cênicas ou entrava para escolas de dança e música. Então, elas começaram a falir. Porém, instituição alguma estava preocupada com esses pequenos nichos, muito menos os governantes. Aos poucos, os poderosos foram entendendo que a arte, na verdade, só complicava tudo. Que manipular sem arte era bem mais fácil do que usar ela. Todo este pensamento foi se tornando cada vez mais obsessivo.
Achei que estranharia pouco quando o decreto foi dado. Mas só de ver o rosto da Merlly naquele dia entendi que nossas vidas estariam arruinadas. Na manhã seguinte já não havia músicas no carro. Nas avenidas, vi os cartazes de shows, peças e apresentações sendo retirados. Não que eles fossem muitos, mas eu sabia estava indo de mal a pior. Em uma das ruas, várias crianças choravam porque estavam queimando guitarras, violões e outros instrumentos musicais. Alguns brinquedos com músicas também foram queimados, assim como roupas para dançar, figurinos, etc. Quadros também evaporaram no ar, igualmente juntos com todas as ferramentas usadas para pintar e desenhar. Esculturas foram jogadas no mar junto com programas de computadores onde era possível pintar e colorir. Nem preciso dizer que filmes e decorações também foram extintos. Nas paredes brancas das casas, apenas o mesmo relógio de enfeite. Naquela época eu valorizava apenas alguns tipos de arte, como a dança de Merlly. Hoje seria capaz de dar tudo que tenho por um pedacinho de qualquer uma delas, nem que ela fosse a cabeça de um boneco de neve feita por uma criança.
Assustei-me mais quando todos os cadernos foram substituídos por um computador em que só poderia escrever coisas relacionadas aos estudos. Qualquer texto que fosse interpretado como fruto de uma imaginação com o fundamento de ser arte era apagado pela sede de computadores. Baniram o lápis e os poemas, os artesanatos e as letras de canções. Se alguém era visto cantando, poderia ser espancado ou até morto. Assovio também não podia. Bater o dedo na mesa ou o pé no chão, com qualquer tipo de sincronia era automaticamente relatado às autoridades. Uma vez me peguei abrindo e fechando o zíper de uma jaqueta de forma divertida, construindo uma música horrorosa. Não demorou muito para que eles vissem e o substituísse por botões.
Eu já estava ficando louco. Cantava músicas em minha mente e escrevi um livro inteiro apenas na minha cabeça. Os poderosos de nossa cidade olhavam tudo e fiscalizavam todos. Não demorou muito para que minha Merlly se matasse, assim como muitos outros que não aguentavam. Isso foi logo depois que baniram as professoras e professores, porque ensinar era uma arte. Dizem que ela morreu cantando. Mas talvez sejam apenas boatos, porque qualquer um que estivesse escutado não estaria vivo para contar. As mortes não foram ruins para os governantes, já estávamos mesmo com uma superpopulação. Aliás, como a depressão era uma doença mental, diziam que não podiam fazer nada pelos suicídios. Apesar de tudo, boatos diziam que os ricos mantinham várias formas de arte dentro de casa. Mais uma vez não havia como saber se eram apenas boatos.
Mas aos poucos isso foi ficando grave demais. Perceberam que tudo poderia virar arte. Portanto, baniram qualquer tipo de trabalho não maquinal. Removeram todos os móveis sob medida, todos os textos de jornalistas, as fotografias, etc. Os textos passaram a serem produzidos por máquinas que eram programadas para analisar friamente a notícia. As fotos, que mudavam de acordo com o olhar de cada pessoa, também começaram a serem tiradas por máquinas. Em série, sempre em série e dentro dos mesmos padrões, inclusive a arquitetura de prédios e casas. Algumas cores também foram banidas, porque poderiam representar de um jeito artístico uma tristeza ou alegria. Logo, apenas cores determinadas eram colocadas em produtos e roupas. E sim, a moda também morreu, assim como os videogames. Qualquer artigo que envolvesse imaginação e criatividade no processo de produção ou mediante exposição foi embora em chamas.
Antigamente as pessoas reclamavam que não sabiam quem eram exatamente. Mas elas não sabiam por que eram levadas a se questionar o tempo inteiro. Hoje eu não sei quem sou eu. Mas isso é porque penso que posso ser qualquer coisa e, pior, tanto faz. Vale mais a pergunta: O que sou eu? Sinto-me como o mesmo lápis que escreve nesse papel. Ou menos. O lápis ainda significa e tudo que significa ainda pode ser arte. Eu já não significo e nem sou. Sou muito menos do que um lápis. Porém, mesmo sabendo que posso morrer, agarrei esse objeto (que é bem mais do que eu mesmo para mim) e escrevi uma carta. E se ela chegasse ao passado como meu filho prometeu? Então, eu falaria para nunca se esquecerem da importância da arte nas vidas das pessoas e nem daquele dia em que você foi tão alegrado por ela. Mas quanta besteira, ninguém me lerá! Darão um jeito de banir a máquina do tempo por ela ter total relação com a arte.
Apenas não posso aguentar mais isso. Penso que logo chegará a minha vez e verei Merlly. Talvez hoje, pois tenho uma corda pendurada no teto esperando o grand finale. Está escondida, pois é claro que é proibido se matar de forma trágica. Afinal, isso remete ao teatro. Se te pegam morrendo assim, te matam. E só. Mas eu não! Prefiro morrer com tragédia do que como coisa. Mas sou o protagonista dessa carta e um dia me disseram que se o protagonista morrer a história não pode continuar. Será verdade? Não queria que eu também matasse a arte. Devo honrar essa carta e continuar vivo para não matar a arte ou devo me matar e terminá-la? Queria ter morrido como me disseram que Merlly morreu, mas talvez esteja mesmo louco demais para pensar agora. Entrego esta carta ao meu filho e à máquina do tempo. Deixarei este final em aberto.
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