É difícil escrever esse texto sendo um homem cis
heterossexual branco de classe média sem nenhum tipo de deficiência física. Em
resumo, não estou em nenhuma classe oprimida da sociedade e, portanto, muitos
diriam que não tenho base para argumentar sobre qualquer assunto relacionado ao
preconceito ou à discriminação. Se pedir um pouquinho de atenção e confiança
for pouco, gostaria pelo menos de lembrar que, no debate racional da esfera
pública, argumentum ad hominem (atacar a pessoa, e não suas ideias, propostas
ou pensamentos) desqualifica o interlocutor, além de ser desonesto
retoricamente falando e impossibilitar a discussão plena.
Trocando em miúdos, não conversar com mulheres sobre futebol é tão preconceituoso quanto não ouvir um homem sobre assuntos feministas, mesmo que a pessoa em questão esteja errada em sua fala. Aliás, ao fazer isso a única classe prejudicada é a oprimida, que perdeu a oportunidade de esclarecer uma pessoa por pura e simples arrogância de se negar a discutir temas que podem já ter sido superados em algumas esferas mas mantém-se em voga na sociedade como um todo.
Trocando em miúdos, não conversar com mulheres sobre futebol é tão preconceituoso quanto não ouvir um homem sobre assuntos feministas, mesmo que a pessoa em questão esteja errada em sua fala. Aliás, ao fazer isso a única classe prejudicada é a oprimida, que perdeu a oportunidade de esclarecer uma pessoa por pura e simples arrogância de se negar a discutir temas que podem já ter sido superados em algumas esferas mas mantém-se em voga na sociedade como um todo.
O preconceito, como a própria palavra – muito mal empregada
em grande parte dos casos – exprime, consiste na formação de opinião sobre um
objeto do qual ainda não se conhece. Ou seja, só é preconceituoso quem não sabe
do que está falando. É claro que, desde os tempos das cavernas, o desconhecido
provoca medo ao ser humano. Freud teria muito a dizer sobre isso, mas, indo
direito ao ponto, a base do discurso de ódio é a ignorância. E a melhor forma
de combatê-lo definitivamente e a longo prazo é a elucidação das questões
referentes a ele, mesmo que em doses homeopáticas e a nível individual. É claro
que tratar desses temas em grupos de discussão esclarecidos e engajados é
fundamental para produzir conhecimento. No entanto, em uma sociedade racista,
sexista e heteronormativa, são raras as pessoas que não precisaram passar por
um processo educativo a fim de extinguir suas ideias conservadoras recebidas da
tradição familiar e até mesmo da própria vivência. Quem não teve a oportunidade
de se livrar dessas idiossincrasias ultrapassadas vive na ignorância e, por
isso, é propenso a reproduzir o discurso de ódio que permeia nossas relações
sociais mais sutis.
Lutar pela liberdade não significa apenas conquistar uma lei
ou um decreto e ter garantidos direitos de cidadão. Afinal, institucionalmente
falando, nós somos todos iguais na Constituição. Isso não basta. Nos libertar –
e digo isso na primeira pessoa porque o machismo também prejudica os homens,
algo que é tema para outro texto – do patriarcado vai muito além de conquistas
judiciais, e passa pelo esclarecimento da população. Enquanto existirem
indivíduos que acreditem na superioridade branca, defendam a desigualdade entre
os gêneros ou condenem as diversas formas de sexualidade, a sociedade como um
todo ainda precisará lutar. Muito progresso já foi feito, sim, mas ainda
estamos longe de um mundo ideal. Não adianta combater apenas o fiu-fiu, as
bananas atiradas, os xingamentos e a perseguição a homossexuais, entre outras
atitudes desprezíveis que vemos no cotidiano. Esses gestos não passam de
sintomas superficiais de um problema muito mais estrutural. E como bons amantes
da democracia, sabemos que não é pegando em armas ou negando a existência de
opiniões divergentes – por mais que sejam apenas reprodução dos discursos de
ódio – que iremos resolver essas questões. Faz-se necessário o diálogo entre os
diferentes, a discussão no nível racional e argumentativo, os debates na esfera
pública e privada, até que se possa extirpar todo tipo de ideia preconceituosa
da sociedade. Isso significa que sim, aquelas horas e horas que você já passou
discutindo – não brigando – com um homofóbico, seja na internet ou
pessoalmente, são mais que fundamentais. São imperiosas para a libertação das
classes oprimidas, e mesmo das opressoras. Quem já explicou calmamente para
alguém que na verdade ninguém escolhe ser homossexual e viu a pessoa sair da
ignorância e, aos poucos, mudar de ideia, sabe do que estou falando.
Desqualificar seu interlocutor pelo simples fato de ele ser
preconceituoso não faz o menor sentido, pois não é ele que está sendo oprimido
pelas estruturas da sociedade. As minorias é que têm a necessidade de se
libertar por meio do esclarecimento geral. Cada vez que um afrodescendente
defende que um branco não pode opinar a respeito da discriminação étnica ou uma
feminista se nega a debater a questão de gênero com um homem, quem se prejudica
são os próprios grupos que sofrem com a opressão. É muito importante produzir
conhecimento entre si, mas é só por meio da discussão que se leva esse saber
para as massas, e é só através desse processo que a libertação será possível.
Se os grupos não se comprometerem com a árdua tarefa de iluminar os ignorantes,
os mecanismos opressivos da sociedade vão continuar atuando, seja por ódio, por
preconceito ou simplesmente por inércia. Essa missão se dá paulatinamente, e
cada pessoa é igualmente importante. Se ignorarmos quem nos oprime, nós é que
seremos ignorantes, não?
Graças a esses aspectos, a eficiência de manifestações que
têm como objetivo chocar a sociedade é altamente questionável. As pessoas mais
bem resolvidas intelectualmente compreendem perfeitamente a ideologia por trás
de um ato como a Marcha das Vadias. Sim, nós entendemos. O problema é que nós,
que concordamos com isso, não precisamos ser conscientizados de nada – ou
talvez até precisemos, mas em menor escala. Quem deveria ser atingido e
sensibilizado por essas atitudes são justamente as pessoas que se chocam e
acabam se afastando dos ideais de libertação. É justamente por causa da
abordagem que o cidadão médio tende a ter mais aceitação por alguém como
Feliciano, Malafaia ou Bolsonaro do que pelos movimentos LGBT+ ou pelos grupos
feministas. Sim, nós sabemos que a ideologia deles é de ódio e completamente
hipócrita, mas se aproximam muito mais – mesmo que por meio de um discurso
falsificado – do ideário das pessoas de menor instrução do que um intelectual
que se nega a explicar a diferença entre identidade de gênero e orientação
sexual ou a importância de se combater o patriarcado e o racismo, por exemplo.
Se aproximar de pessoas que reforçam estereótipos e
preconceitos, discutir temas delicados e convencê-las a refletir e mudar de
ideia exige paciência, talvez até um pouco de didatismo e uma certa ambição
doutrinária. Mas enquanto esses indivíduos pensarem de forma conservadora, é
tarefa dos intelectuais e dos grupos oprimidos mudar a sociedade por meio do
diálogo. Mesmo que isso implique em aceitar opiniões provenientes de um homem
cis heterossexual branco de classe média sem nenhum tipo de deficiência física
às vezes.
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