No princípio criou Deus o ócio. A atividade mais produtiva de que se tem notícia é uma boa tarde de nada. Se o capitalismo tivesse alguma ponta de racionalidade, os proletários seriam pagos para não fazer nada. Eu não fazia nada quando esse fato me ocorreu. É no tudo que reside o caos. O nada é a última morada do espírito, o subúrbio da existência. O que somos nós quando não estamos sendo? Lá vinha eu caminhando pelas quebradas estreitas dessa favela, do alto dos altos e baixos dessa intransitividade que sou, quando me deparo com um trânsito desconcertante.
O deslocamento não tinha dimensões colossais, mas o fluxo intenso de carros fazia com que a viagem levasse mais tempo que o planejado. No interior do veículo, meus pais e eu dividíamos o ar a ser respirado, muito mais do que suficiente para os três. Tudo parecia bem, o rádio exprimia sons suaves, cujos compassos imprimiam em mim uma profunda sensação de bem estar. Meu ser estava completo naquela situação, e não havia nada mais a se fazer.
A modernidade, no entanto, causa a sensação de morosidade quando não se está agindo. O homem perdeu a capacidade de simplesmente ser, e passou a buscar novos artifícios para não apenas desempenhar sua existência, mas sentir-se efetiva e intensamente vivo a cada segundo. Permanecer parado no trânsito não é algo que sugira experiências vibrantes, mas o que de fato importava naquele momento era entrar em contato comigo mesmo, independente da situação exterior.
Ao volante, porém, meu pai não compartilhava de minha opinião. Quando se está em meio a uma travessia, seja pela cidade ou pelo oceano, há duas opções: passar despercebido pelo trajeto, como se o destino fosse o único objetivo; ou fruir de fato o deslocamento como um todo, entendendo-o como um processo completo, singular e único a ser vivenciado. Não obstante, doses colossais de cortisol percorrendo as veias podem alterar os sentidos de uma pessoa drasticamente. Apreciar o tempo em que não se faz nada pode não ser viável em meio ao estresse injustificado que vem sendo injetado em cada um diariamente. Meu pai tinha pressa.
Toda aquela agitação suprimia sua própria capacidade de ser por si mesmo, e ele agonizava por estar parado no trânsito. Contraditoriamente, ele sentia-se perdendo tempo, mesmo não tendo nenhuma tarefa agendada para aquele dia – um domingo, diga-se de passagem. Era um refém da modernidade, contorcendo-se para chegar ao outro lado da cidade o mais rápido possível sem nenhuma razão definida, apenas para poder deitar-se no sofá e passar a tarde inteira aguardando a chegada de algo que quebre o tédio solene que se instalaria quando ele concluísse seu objetivo de alcançar a soleira da porta de casa.
As manobras arriscadas executadas para ludibriar a horda de automóveis que se amontoava na avenida assustaria até mesmo um dublê de filmes B de ação dos anos 80. Quase colidimos contra outras famílias por mais de uma vez. Isso tudo porque não se podia perder uma tarde como aquela preso no trânsito. Há de se chegar logo ao destino. A viagem tem de ser concluída. O fato é que ambos obtivemos logro na tarefa de fruir o tempo que nos foi concedido. Cada um à sua maneira. A fraude e o sucesso, ao menos no dicionário, andam de mãos dadas.
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