2 de outubro de 2014

Entre selfies e mecenas


O número crescente de selfies em exposições vêm aparecendo de uma maneira assombrosamente estranha. Com elas também surge a dúvida: a obra que saiu atrás das fotos serviu como uma mera figurante e um jeito novo para divulgar o nível cultural daquele que a publica no Instagram e Facebook? Ou ela serviu para transmitir a alguém, por meio de uma lente, o fato de que as pessoas realmente estão interessadas em toda a sua complexidade?
Se você não se sensibilizou com a mostra e por isso não tirou fotos com a hashtag “amei”, podem te persuadir a dizer que ela é boa pelo simples motivo de que todos gostaram. Mas ao decidir que manterá a sua opinião firme, te ignoram. Aos olhos daqueles que ficaram em variadas poses com o vestido que combinou com o quadro, é você que não entendeu a complexidade.
Na exposição “Obsessão Infinita”, de Yayoi Kusama, este fato era claro. Ao questionar uma garota sobre o que havia para se observar em uma das salas, ela apenas me respondeu: “Um monte de bolinha, tem tanta bolinha que eu nem sabia onde colocar as bolinhas que ganhei”. Em seguida, mostrou a mão ainda com alguns adesivos e o celular coberto das tais bolinhas coloridas. E se a arte virou mesmo adesivo em papel, afinal, para onde foi o papel da arte nessa história? Talvez em uma sala onde ninguém entende ao certo por que deve colar as bolinhas nos móveis e paredes, pois o importante mesmo é registrar o momento.
Porém, se engana quem pensa que essa apreciação de se expor em algum lugar cultural para os outros observarem é uma novidade estranha do que a arte virou. O mecenato é uma prática que surgiu no Império Romano, declinou na Idade Média e teve o seu ápice no Renascimento Cultural. Neste modelo, a produção era incentivada por meio de um pagamento aos artistas para dar notoriedade ao mecena. Em grande parte, eles não estavam preocupados com a arte em si, mas em estarem vinculados a ela. Prova disso foram as variadas vezes em que tiveram seus rostos representados nos quadros que pagaram.
        O interessante de toda essa história é que sem os mecenas provavelmente essas obras, quadros e afrescos como os conhecemos hoje não existiriam. Isso porque os artistas pintavam para sobreviver. A partir do momento que não lhes pagavam mais, eles paravam. Devemos o papel da arte nesses anos todos àqueles que, de certa forma, foram os antecessores da selfie?
Agora, nos olhares de quem procura uma boa foto, nas filas enormes e nos pés que escorregam pelo salão das galerias, ainda não há como dizer se esse papel se esvaiu por inteiro. Talvez ele esteja apenas aumentando, pois a arte tem uma função muito clara; ela quer ser vista para existir e causar alguma emoção. Hoje em dia, com exposições baratas e possibilidade de fotografar, é possível cada vez mais apreciá-la, conhecê-la e divulgá-la.
        Não podemos negar que as pessoas de alguma forma a contemplaram, mesmo que por fotos. A arte tornou-se democrática e tal fato é fundamental para que ela continue existindo. Mesmo que o público tenha ido para se expor e não para olhar a exposição, não podemos negar que é difícil cobrar um pensamento crítico quando o contato com algo ainda é primitivo. No Brasil, a prática de ir a museus e galerias para as pessoas de baixo nível social, e até mesmo médio, iniciou recentemente. Quem sabe as selfies não sejam também uma nova forma de chamar um público, que nunca antes havia tido interesse por esse espaço cultural ou nunca pensou que podia interagir com ele. Seja como for, começar a frequentar é o primeiro passo e nesse sentido a arte está se exercendo.
       Seria também incoerente pedir que alguém entendesse do “jeito certo” as obras, afinal, não estamos em 1964. A arte apresenta diversos níveis de expressão, que atinge inúmeros significados e significantes. É importante não crucificar as fotos e nem aqueles que não gostaram de uma exposição. Não é possível dizer que tais atitudes são ruins ou boas, porque não sabemos onde elas darão. Os mecenas resultaram de forma indireta na Capela Sistina, na Monalisa e em Davi. O que vale é procurar o papel da arte e de quem tira as selfies.

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