29 de março de 2015

O teocídio



Eu cometi um teocídio. Não adianta me denunciar, o crime já prescreveu. Matar um deus sem posse de arma de fogo mediante pensamento racional e senso crítico pode não ser dos crimes mais hediondos, mas é dos mais comuns desde os tempos de Nietzsche. Não pergunte, eu não me lembro como foi. O matei aos poucos, como uma criança que esquarteja o amigo imaginário ou o Papai Noel, membro após membro. A propósito, vamos por partes.



Há que se levar em conta que nasci em uma família religiosa. Desde a mais tenra idade me recordo do sentimento de culpa característico do cristianismo agindo sobre meu inconsciente, pressionando minha personalidade até reduzí-la a uma massa facilmente modelável. Minha mente tornou-se maleável aos ensinamentos pretensamente sagrados, mas inflexível às evidências que o método científico trazia à tona. Confesso que convivi bem com isso durante muito tempo. Admito também ser uma criança preocupada com reflexões incompatíveis com minha pouca idade.

No entanto, a criptonita divina encontra-se justamente na curiosidade. A vontade de aprender mais é irreversível. O saber se instala num canto discreto do cérebro e começa a dissipar seus tentáculos lenta e constantemente, como um parasita que toma controle do hospedeiro silenciosamente. Em pouco tempo, se está desejando conhecer mais sobre o mundo, o universo, os mistérios da vida e da morte. O sintoma seguinte é o pensamento.

Pensar é negar a realidade crua que nos é apresentada em prol de uma idealização fetichista do mundo palpável. O mundo é complexo em sua simplicidade, e essa é a beleza dele. Fraseologia barata? Talvez. Mas a invenção de uma origem arbitrária para tudo isso é menos poética que o acaso brutal que nos aflige diariamente.

A habilidade de raciocinar é uma dádiva. Um verdadeiro presente de Deus. Como um sábio que dá as ferramentas para que seu discípulo – ou criador, no caso – possa se tornar livre de sua própria coerção. Nem todas as autoridades se dão ao luxo de oferecer uma porta de saída tão simples. Se o Estado fosse como Deus, viveríamos em anarquia há muito tempo. Não sei dizer até que ponto isso seria ruim. O fato é que cometi um teocídio. Há muito tempo. Com minhas próprias mãos. E me sinto perfeitamente bem com esse fardo. Isso não é necessariamente um incentivo, mas sim uma confissão.

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