15 de dezembro de 2016

Quando ela flor




Porque um dia ela vai ─ irá semente regada com todos os abraços possíveis e todos os beijos que alguém pode dar. Quando ela flor, a saudade será enorme e o desejo de voltar atrás, imenso. Por isso, antes de ela flor, viverei como se ela flor a qualquer dia desses. Mas não estarei pensando nela flor, porque o presente é bom com ela aqui antes de flor. E antes eu a farei rir e terei muita paciência, como quando ela tentava me ensinar a ser sol, lua e todos os astros. Terei aproveitado com ela até o primeiro momento de flor. Quando ela flor, não nos falaremos mais por um bom tempo.

Eu sei que não importa o quanto tenhamos conversado, jamais sentirei que foi o suficiente depois de flor. Mesmo assim, meu coração estará cheio porque passei muito tempo a regando. Por isso, antes de ela flor, terei feito o meu melhor. Farei o possível para que não fique triste ou perca a vitalidade, assim ela será flor da melhor maneira. Antes de ela flor, sei que não poderei abdicar a minha vida pela dela, mas farei o possível para que ela me sinta presente, mesmo que seja no braço de outro alguém. Moverei rios e montanhas para que ela fique bem segura, e farei o possível para que tenha bons dias antes de flor. Porque quando ela flor, a vida terá de seguir e eu saberei que fiz o meu melhor para ela flor. Estarei em paz a cada florescer de todas as flores do mundo, mesmo quando ela flor. Até que eu flor também, porque todos nós vamos flor e floresceremos o mundo inteiro para outras flores.

8 de dezembro de 2016

Na terra dos cardumes



O farol abre e a onda selvagem de pessoas na calçada dos números pares da Avenida Paulista vai me mastigando e ruminando enquanto ando. É tanta gente lá pela hora do almoço, perto do prédio da Gazeta, que não se sabe mais distinguir entre os pensamentos dos outros e os próprios. Somos tantos dando passos juntos, tropeçando nos mesmos degraus, invadindo os mesmos faróis, que acabamos trombando também mais em nós mesmos, caindo nas próprias histórias, sendo engolidos pelos medos. Não dá para sair correndo, de modo que apenas enfrentamos a massa furiosa em busca do almoço, da casa, da água livre e rasa. Se debatem como peixes subindo o rio. Mas quando você nada do lado contrário, acaba correndo o risco de te repararem. Seu olhar também se torna mais potente, porque poucos são os observados de frente.

Talvez seja por isso que todos os dias o homem dança na mesma calçada, sempre encarando os cardumes. No entanto, enquanto me debato, ele reina em um círculo próprio no asfalto da urbe. Seu espaço é demarcado pela massa que me engole e desvia dele como se fosse um ser vivo inteligente. Ele, por outro lado, conhece bem aquele habitat natural. Ao som do hino nacional, dá passos imprecisos para todos os lados, bate suas castanholas e vibra o corpo inteirinho como uma serpente desajeitada que nunca dá o bote final.

Ele é todo colorido e na natureza sabemos bem que esses seres são os mais venenosos, mesmo que ataquem apenas para se proteger de predadores mais vorazes, como eu e você. Prova disso é o primeiro pensamento: “aquele pobre diabo, que nasceu sem talento e fica aí se esforçando. Aquele ser com parafuso solto, que ninguém conseguiu apertar, que fica aí, nadando contra os cardumes”.

Só então percebo que eu e ele somos os únicos com os corpos apontados na mesma direção. Eu lutando. Ele dançando porque o círculo é seu ringue. Vou nadando naquele rio de concreto, presa entre os peixes. Ele é todo corpo se expressando, deixando as mãos indo e vindo na terra dos cardumes. Uma menina, desses peixes bem arrumadinhos, dá umas moedas. Por que precisa ser bom? Me pergunto. Porque o artista não pode ser fogo na água de pedra? Dançar com suas castanholas estranhas, criando a própria música. O círculo do lado que se queira estar. Munir-se de cor contra o veneno.

Ele me picou. E me picou porque eu o ataquei. Fico alucinando na lucidez entre os cardumes. Quero estender o braço para que o homem dançando me puxe. Mas, diferente de mim, ele olha sem pena. E me pica de novo. Porque aquele é o círculo dele. Eu que tenha a coragem de fazer o meu próprio se sou tão artista quanto digo ser. E mais uma picada para que eu olhe ao que dizem ser loucura e oferte ela reconhecendo o bem valioso que é ter “parafuso solto” na terra dos cardumes.

Viver arrastada assim não dá. Tentar passar os dias no meio dos peixes porque lá é que se esconde melhor. Destoar, porque não se aguenta, e virar dentro da corrente a todo o momento para buscar o que não quer revelar. Ignorar a própria natureza selvagem porque é confortável ser cardume, até que não é mais. Dizer a todo o momento que vai sair do cardume e ter medo de não ser suficiente ao dançar no próprio ringue.

Ter pena de quem tem pena de você. Porque você é o cardume infeliz, o que é pior do que só ser cardume. Ter a coragem de dançar a caminho das críticas e do ridículo sem esperar o contrário. Mas dançar porque a dança te alimenta. Dançar na Paulista porque qualquer lugar é seu palco. Dançar até não poder mais pela satisfação de ser peixe e não cardume. Dançar pela vida e não pelo aplauso. Dançar até criar círculos, até a massa desviar, até a perna bambear e o fôlego acabar. Ser finalmente peixe na terra dos cardumes sem jamais se contentar, sem deixar de ser fogo em água de pedra, sem esquecer que peixe sempre corre o perigo de voltar a ser cardume.



28 de outubro de 2016

Por que temos medo do escuro


Temos medo do escuro porque não nos reconhecemos na própria sombra projetada no chão. Temos medo do escuro porque, quando pequenos, nos contam que é lá onde os monstros moram. Quando crescemos, entendemos que a hora do escuro é também a dos milhares de pensamentos e que eles viram as temidas criaturas da infância.

Temos medo do escuro porque é debaixo do tapete que está a poeira e, para limpar, é preciso vê-la. Além do mais, não podemos esquecer, o escuro é onde primeiro vemos, mas temos medo de retornar para o lugar de onde viemos. Temos medo também porque, mesmo às cegas, sabemos que o escuro é o que por último vemos.

Temos medo do escuro porque o escuro está em nós. Digo, literalmente. Nas pálpebras fechadas, no buraco do ouvido, na boca aberta, no umbigo, nas narinas e em outros orifícios. E não literalmente também. Já pensou se esses pequenos buracos negros aumentam e se tornam parte do escuro de que temos medo?

Temos medo do escuro porque é o que observamos quando descansamos, beijamos, meditamos e choramos. Temos medo do escuro, porque o que os olhos não veem o coração teme. Temos medo do escuro porque os melhores esconderijos e sustos eram nele. Tememos porque sabemos que ele vem, mas também que ele se vai. Temos medo porque não enxergamos além dele. Tememos porque toda luz provoca sombras.


Temos medo do escuro porque ele é a simplificação da vida, e não queremos modestidade. Queremos algo mais, queremos ver além do escuro. Queremos a luz, sem a sombra. Queremos os pensamentos, sentir o tapete, cegar ao sol. Poder ver o buraco, a cama deitada, o rosto beijado, as pernas cruzadas, a água derramada, o lugar secreto e o dia nascendo. Temos medo do escuro porque algum lugar tem de parecer seguro, e já tão cedo aprendemos a não temer a luz.  

9 de outubro de 2016

Confissões de uma autora assassina



Eu sempre quis matar alguém importante. Já tentei os mais comuns, mas nunca fui capaz de matar a personagem principal. Aquela que todo mundo ama. Aquela que todo mundo torce. Criaria a história mais envolvente do mundo só para que ela morresse no final. E o leitor ficaria com ódio de mim, como tantas vezes fiquei de muitos autores. Essa gente que foi muito mais corajosa que eu. Gente que assumiu: matá-la irá me doer, mas tornará essa história inesquecível.

Não. Não sei como ter, se tenho ou se treino essa maldade. Tanto tempo construindo a personagem, aplicando dramas durante a sua vida, fazendo ela passar pelas mais altas provas para tudo acabar em morte. Como eles conseguem? E toda aquela responsabilidade de matar o ser que você mais ama? É muito mais difícil escrever a morte do que a ler. Uma vez fiz uma das minhas personagens favoritas passar por um grande drama (não era a morte) e quase me afoguei em lágrimas.

Enquanto não apago a chama da minha história vou matando pelas bordas. Um personagem secundário aqui, outro terciário ali... mas acho que um serial killer já  nasce dominando a arte, não é mesmo? Ou talvez seja uma questão de sentimento. A gente sabe quando alguém vai morrer. Sente-se que é necessário matar. Como se notasse que é chegada a hora. Como se fosse o próprio Deus. Não consigo parar de pensar que pode ser assim conosco também. E se a arte imita a vida, então está explicado porque a personagem principal ainda não morreu.

6 de outubro de 2016

Tinha certeza de que seus olhos eram verdes



Verdes como esmeralda, verdes como um mar calmo num dia de sol, verdes como a grama bem molhada. Agora eu os vejo castanhos e fico em pânico. Como posso ter me enganado tanto? Mal a conheço e acabo de descobrir que a conheço pior do que imaginava. Mas a gente se engana com as coisas invisíveis e não com as visíveis. A menos que se esteja cego em todos os sentidos...  E eu estava cega todos esses dias quando a vi com seus olhos verdes que não estão mais aí. O mais curioso é que sempre os achei lindos! Pensava: que lindos olhos verdes aquela moça tem. Fiquei refletindo por minutos como eu fui ver olhos verdes no lugar dos seus. Nesse quesito não costumo me enganar, eles são a janela da alma. E é como se eu visse a sacada de um apartamento onde, na verdade, é uma casa.

Pensei que poderia ser uma questão espiritual. Por que verdes? Me diga qual é essa camada estranha que nos impede de perceber os outros, sentir suas dores, seus amores, entender que é gente como a gente não importa se são olhos de esmeralda ou chocolate. Você e esse verde que agora procuro insistentemente, como se estivesse mentindo para mim, e justo agora que estamos frente a frente! Como pôde fazer isso para me presentear com esses novos olhos? Não me sinto digna do castanho deles. Cultuei o verde como se ele fosse algo irrefutável. Fiz um altar, o cumprimentei, percebi sua presença antes de você chegar. O verde acenou para mim. Mas agora o castanho me chama à realidade. Seu rosto muda. É como se a minha máscara caísse ao perceber que o verde não está aí, que ele não vai voltar. Que o verde que vi é outra coisa…

Seu verde me lembra ausência e ele é a materialização da própria. Seu verde é despedida. É choro e também saudades. Seu verde é amor, seu verde é intocável. Quero conhecer a verdade por trás do verde que nunca existiu. Quero que me conte quem é e porque escolheu mentir sobre o verde. Quero que me diga porque acha que o verde a escolheu. Não me leve tão a sério. Eu não sei nada sobre você, apenas que tinha um verde que a seguia e que, um belo dia, parou. Eu também tinha olhos verdes que me seguiam, sabe? Seu verde é o mesmo daquela que amei. Que aconteceu? Não sei bem, mas me lembram seus olhos. Eram verdes até que simplesmente deixaram de ser. O que eu via, então, era apenas o reflexo dos meus. O que me diz? Seus olhos são mesmo verdes! Ah, é a luz...  Ah, é a sala e as paredes…  Ah, é que vai chover e aí eles ficam mais cheios de barro…

Engraçado. Há um minuto eu poderia jurar que eram castanhos. Como pode existir tanto verde no seu castanho, tanto castanho no seu verde? Já lhe disseram que seus olhos são lindos? Nunca vi nenhum mudar de cor assim. E se quer saber, não importa. É mesmo bom pensar que seu verde e o meu estão por aí escondidos, esperando o melhor momento para voltar e dizer que, na verdade, esse tempo todo estavam juntos em todos os lugares, com todos os verdes do mundo que andam sumindo por aí. Se quer saber, acho que um dia o verde vai deixar de ser ausência para se transformar em preenchimento. E vamos celebrar o verde de novo. Eu e você.

8 de julho de 2016

Carta de um fã palpiteiro


Queridos roteiristas do seriado “House of Brasil”,

Fico pensando de onde tiram tanta criatividade. Achei excelente a primeira temporada, especialmente os últimos episódios, que culminaram com o afastamento da presidente Dilma Rousseff. Derrubar um governo usando como argumento uma pedalada fiscal que vários políticos já fizeram — como o capítulo “A volta dos que não foram: todos somos pedalados”, primeira temporada, muito bem mostrou — é, sem dúvidas, uma tacada de mestre dos roteiristas. As reviravoltas foram impressionantes, porém a que mais me deixou sem ar foi quando Eduardo Cunha renunciou — sinceramente, eu achei que ele seria o grande vilão da série, espero que estejam pensando em algum tipo de volta triunfal para ele — dando ares para o novo presidente interino da câmara dos deputados, no final do episódio “O Império Contra-Ataca: A Decisão de Maranhão”, tentar cancelar o Impeachment. Meu coração quase veio na boca!

O que mais apreciei no episódio “Votação na Câmara na Frente das Câmeras” foi que vocês deram destaque para a deputada Raquel Muniz exaltando o nobre prefeito de Montes Claros que, segundo ela, estaria realizando uma gestão exemplar. E então, na cena pós-créditos, ele foi preso no dia seguinte! Pensei que após a “season finalle”, com o afastamento da Presidente, o seriado daria uma esfriada. No entanto, a segunda temporada está sendo tão boa quanto a primeira, ou até melhor. Os episódios de gravações da Lava Jato estão muito mais intrigantes. Os personagens Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney estão exímios. Talvez vocês poderiam ser mais realistas e ter menos preciosismo com os personagens. Não é apelativo demais que políticos com tais áudios nunca vão parar atrás das grades?

Ademais, adorei a referência aos livros clássicos de distopias. O ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, que tanto promoveu a violência policial contra negros e pobres, tornou-se o titular da pasta da Justiça. Lembra muito a composição ministerial de “1984”, do George Orwell, em que o Ministério da Paz é o que promove a guerra. Um personagem que teve participação bastante ativa na primeira temporada e está um pouco sumido nesses capítulos mais recentes é o Lula. O episódio do sítio e tríplex não ficou bem resolvido e é uma ponta solta importante da série.

Sobre Temer, acredito que vocês poderiam ter escolhido um ator melhor para encená-lo. Às vezes ele me parece um vampiro, inexpressivo demais — não que Dilma seja melhor atriz que ele. É curioso que todo país tem um presidente e o Brasil nesse seriado, que se mostra um local de muita riqueza, tem dois.  Outro fato é que às vezes vocês exageram nas ironias. O presidente do senado, é também o que defende o fim das gravações. Nove dos ministros do Governo Temer foram citados na Lava Jato. Sem falar da extinção — e posterior retorno — do Ministério da Cultura. Talvez não seja um recurso narrativo tão eficiente fazer os personagens tomarem decisões das quais logo se arrependerão e voltarão atrás. Aliás, ainda bem que agora vocês tiraram um pouco o pato do pano de fundo das imagens (apesar de eu achar que ele atua melhor que o Temer).

Gostaria de parabenizar pelo trabalho que vêm fazendo semana após semana. Deve ser difícil manter a audiência entretida durante tanto tempo com um tema que não atrai muitas pessoas como a política. Fora que nunca sei em qual personagem acreditar. Parece que vocês não vão deixar sobrar nenhum para ser o mocinho. Mas pensem com carinho no Moro. E lembrem-se, como diria Nietzche: “A arte existe para que a realidade não nos destrua".

Ass.: Uma pessoa que os admira profundamente, mas com ressalvas.

26 de maio de 2016

Como conseguir disciplina para escrever?



Sabe aquela sensação chata quando o dia acaba e você não escreveu nada? Para ser sincero, não conseguimos entender como o relógio pode avançar tão rápido! Mas isso não é um problema só seu, acredite.


A solução é o que todos nós precisamos diariamente na vida: uma boa dose de disciplina. Por isso, reuni 10 dicas que ajudaram a me colocar nos eixos. Elas foram criadas por mim ao ir testando e vendo o que dava ou não certo. Hoje, acabo de terminar um livro de aproximadamente 500 páginas seguindo essas principais regras. Foi aí que pensei sobre como elas poderiam ser úteis também para outras pessoas. No final do dia, desejo que você tenha conseguido alcançar o melhor de si ao escrever! Se tiver dicas também, não deixe de compartilhar com a Coruja. Afinal, ajuda é sempre bem-vinda! Mas agora vamos lá:


1. Tenha um fã (ou vários)
Convide alguém com disponibilidade e que, de preferência, ame ler o gênero que você escreve. Vale de tudo: mãe, pai, tia, namorado, professor, um bom amigo. É para essa pessoa que os capítulos ou textos serão mandados assim que você terminá-los.
Mas lembre-se: ela não precisa ser especialista em português ou histórias. É claro que se for, melhor ainda. Porém, o objetivo principal é ter uma cobrança exterior impulsionando você. Afinal, todo autor quer ser lido, certo? É muito empolgante ver as reações de um leitor ao longo da história (conversas com eles e saber suas expectativas pode, inclusive, dar novas ideias), e é esse sentimento e a curiosidade pelas próximas palavras que poderão ajudá-lo muito a estabelecer uma disciplina. Afinal de contas, agora não dá mais para desanimar e deixar uma dívida com o mais novo fã.


2. Use os momentos mais produtivos do dia
Tem gente que possui um pico maior de energia à noite; outros, à tarde. Algumas pessoas precisam dormir menos e outras, mais. Por isso, é importante conhecer comportamentos pessoais e tentar usá-los a seu favor! Porém, se você for do tipo que é mais produtivo de manhã e só tem tempo à noite, procure rascunhar em um mesmo horário sempre, mesmo que não saia nada. Desse jeito, o hábito vai sendo criado.
Não se esqueça de que, assim como existem períodos melhores, há dias mais produtivos também. Por exemplo, muita gente não trabalha nos finais de semana, então é bom usar o sábado e o domingo. O importante é não se pressionar, porque se existe algo louco para travar a nossa criatividade, esse algo é o estresse.


3. Persista!
As primeiras tentativas podem ser um pouco frustradas. Mesmo se nada estiver dando certo, imponha-se uma regra de escrever ao menos uma hora por dia.  Em algumas vezes, pode acontecer de você ficar olhando para a tela, escrevendo e apagando, escrevendo e apagando. Se, depois dessa tentativa, nada sair, faça uma pausa.

Mas, na maioria das vezes, esse é o período suficiente para entrar totalmente no mundo da fantasia e ter alguma ideia. Nesse estágio, faça um rascunho com tópicos do que vai acontecer ou o que será abordado, pense também em formas diferentes de narrar o que imaginou. Mesmo se odiar o que acabou de fazer, não desista antes de completar uma hora no relógio.


4. A atividade não deve envolver outras
Não adianta nada separar uma parte do dia, usar os momentos mais produtivos e ter alguém incentivando se você ficar olhando conversas, redes sociais e sites. Portanto, desligue-se! Escrever é quase um estado de meditação, ou seja, nada pode atrapalhar. Deixe os celulares de lado e explique para as pessoas que este é o seu momento, mais tarde você estará acessível.


5. Descontraia sempre
Lembre-se do que falamos sobre o estresse! Use aliados, a exemplo da música, do silêncio, idas ao parque ou da parada para o café, e descontraia-se.  Muita gente fala que a disciplina está diretamente relacionada com ficar parado, resolvendo tudo até que termine. Mas isso não é verdade, pois não somos uma máquina. Dar um “break” ajuda a relaxar, esvaziar a mente, buscar novas inspirações e ficar pronto para as linhas que vão vir. Ouvir conversas e observar as reações das pessoas também são um ótimo gatilho, aliás.


6. Converse sobre questões que o texto ou sua história abordam
Não precisa comentar a todo segundo sobre o que você está escrevendo, afinal, isso pode ser muito chato para quem ouve. Mas falar sobre os temas envolvidos e perguntar o que as pessoas acham sobre eles pode render muitas conversas interessantes, além de novas inspirações.
Por exemplo, se o livro trata de amor, pergunte o que amar significa para os seus amigos. Se fala sobre política, tente falar com quem se interessa sobre o tema e descobrir novos fatos que renderão mais ideias. Ouvir algo novo, começar uma discussão sem fim e perceber pontos de vistas diferentes vão, necessariamente, ampliar a sua narrativa, trazendo inspirações e motivações para ter disciplina.


7. Qualquer minuto e meio deve ser utilizado
Algumas pessoas reclamam que não possuem tempo livre. Mas será que isso é verdade? Pergunte-se quantas vezes você costuma ficar no celular, vendo TV ou sem fazer nada no caminho até o trabalho. Esse período todo pode ser usado!
No trânsito, há como gravar uma ideia. Se estiver apenas à disposição um celular, use aplicativos úteis para guardar os textos feitos. Caso o local seja perigoso, substitua o smartphone por um bloquinho de notas. Cada segundo pode ser útil, desde que você não o gaste fazendo outras coisas.


8. Tenha metas!
É importante definir metas de curto, médio e longo prazo, tentando alcançá-las. E não estou falando apenas de reservar uma hora por dia. Determine quantos capítulos quer ter até o mês que vem ou se deseja ter um livro pronto em um ano.

Porém, tenha em mente que sempre estabelecemos a nós mesmos metas maiores do que podemos cumprir. Então, saiba que ela é apenas um fator motivacional e não punitivo. Para incentivar, marque em um calendário o dia em que você planeja ter pronto os próximos três capítulos ou três textos. Quando visualizar a data e perceber que está chegando perto, irá se sentir cobrado e tentará manter mais a disciplina. Porém, sem se sentir frustrado, hein?


9. Não escreva sempre o mesmo
Abandonar o  projeto principal para escrever outra coisa pode parecer incongruente, mas não é. Isso porque falar sobre os mais variados assuntos nos mais diversos textos funciona bem quando você estiver cansado de fazer sempre o mesmo.

Pensar temas, tentar novas formas e navegar por territórios desconhecidos aumenta o leque de possibilidades, além de proporcionar um descanso mental. Pense que você não está parado com o projeto, apenas tentando algo novo e produzindo mesmo assim. Portanto, se estiver acostumado a fazer livros, tente fazer um conto. Se você preferencialmente narra em terceira pessoa, faça um texto usando a primeira. Fatores assim ajudam a adicionar mais elementos importantes no principal foco. Ah! E quando voltar ao principal que estava fazendo, não deixe de reler o que já fez ou os últimos capítulos para entrar no climax novamente.


10. Não se prenda à ideia original
Sabe aquela velha história de que um homem nunca bebe a água do mesmo rio, pois o rio nunca é o mesmo e o homem que bebeu a água, também não? Pois é, o mesmo ocorre com você e o que escreve. Por isso, pode acontecer de, um belo dia, você acordar e decidir mudar algum elemento principal da sua história porque acha que vai ficar melhor. Se ocorrer, não tenha receio e nem preguiça! Muitas vezes, algumas pessoas se prendem àquilo que pensaram no início, mas permitir tal fato é restringir a imaginação e deixar o trabalho nada inovador.

Assim como o leitor deve se surpreender com as novidades, o autor também deve se empolgar com elas. Pense que, se o trabalho ficar monótono, ele será, por subsequente, chato. E é impossível manter disciplina quando estamos fazendo algo de que não gostamos.

8 de abril de 2016

O clube do abuso




─ Aaaaah!
─ Aaaaaaaah
─ Ah aaaah!
Que lugar estranho”, Felícia pensou, “mal acabo de chegar e vejo 5 pessoas em uma roda gritando como se sentissem dor”. De fato, aquele lugar era totalmente novo para a bela garota de trança no cabelo e vestido rodado exaltado de flor. As nuvens mexiam-se depressa, quase correndo. Atrás do grupo estranho estava um castelo muito grande, onde se podia chegar subindo um morro.
Felícia observava o grupo de longe, detrás de uma árvore. Imaginou se seria o caso de ir até o castelo e passar por eles sem cumprimentar ou ser era melhor ser educada. Porém, cansada de esperar, saiu da árvore e começou a caminhar. Obviamente, o grupo continuava a gritar e só parou quando Felícia, estando muito perto, disse um agradável “Olá”.
─ Olá, menina bonita. Veio nos prestigiar? ─ Uma mulher falou, sem dar tempo para a menina responder. ─ Não deseja entrar no nosso clube? Estamos a gritar. ─ Ela puxou Felícia delicadamente pela mão e esta não ousou falar. ─ Eu sou a Professora, vejo que se comporta muito bem. Desejaria que muitos dos meus alunos assim o fizessem também.
─ Prazer em conhecer todos vocês. ─ Felícia tornou educada. Desejava apenas ir ao castelo sem ser interrompida. ─ Você é professora do quê?
─ Eu sou a Professora. Ensino bons modos. Diga-me, você gosta mais de correr e pular ou ficar sentada e de me ouvir falar? ─ A mulher indagou.
─ Ora, gosto mais de correr e pular. ─ Felícia sorriu.
─ Pois deveria preferir sentar e ouvir! ─ A mulher a repreendeu, tocando em seu ombro e fazendo com que Felícia sentasse.
Mais uma vez, Felícia olhou para o castelo, parecia ainda mais belo agora que ela não poderia ir até lá tão rapidamente. Olhando para o resto das pessoas, ela perguntou:
─ O que esse clube faz?
Um homem respondeu todo risonho.
─ Somos o clube do abuso! Estamos treinando o abusar.
“Que coisa mais estranha”, Felícia tornou a pensar.
─ E isso é bom?
O homem explodiu em gargalhadas diante daquela pergunta.
─ É claro que é! Ajudamos a manter a ordem. Se as pessoas pudessem fazer o tempo todo o que elas desejassem, o mundo seria um caos. Certo?
─ Entendo. ─ Felícia concordou. ─ E por que gritar?
─ Gritamos para nos sentir mais poderosos. Tente você também!
─ Está bem, posso tentar. Porém, antes, quem é você? ─ Felícia torceu as sobrancelhas.
─ Quem sou eu? Ora, eu sou o Familiar. Fique para nosso almoço e comece a gritar! Aaaaah! ─ O Familiar falou.
Todos os cinco começaram a gritar. Felícia olhou para o castelo, sem saber como dizer que desejava ir para lá.
─ Vamos! ─ O Familiar tornou a falar. ─ Eu sei o que é melhor para o seu futuro. Ou você não confia em mim que sou tão familiar?
Felícia se engasgou diante daquela frase. Deu uma nova olhada para o castelo, mas começou a gritar.
─ Aaaaaaah! Aaaaaah! ─ Felícia notou que todos os cinco gritavam e parou. ─ Não me sinto muito bem.
─ Ah! É sempre assim no começo. ─ Outra mulher respondeu. ─ Você tem muitos compromissos comigo.
─ E quem é você? ─ Felícia tornou a perguntar, notando que havia mais duas pessoas ali que ainda não haviam se apresentado.
─ Eu sou o Desconhecido.
─ Mas isso não é nome de homem? ─ Felícia olhou com curiosidade para a mulher.
─ Ora, tão pequena e já tão abusadora! ─ A mulher chamada Desconhecido riu-se. ─ Pois saiba que sou muito essencial.
─ Mas como, se nem a conheço? ─ Felícia tentou se levantar. Queria muito sair de lá.
─ É por isso mesmo que sou tão poderosa. As pessoas têm medo de mim. Afinal, nada pior do que imaginar o que o Desconhecido irá pensar! Ah, sim! Desconhecido é bem pior do que o Familiar!
A mulher Desconhecido tornou a calar.
─ Entendo. ─ Diante dessa frase e silêncio, Felícia sentiu medo. Desconhecido não era muito dada a apresentações e nada mais falou. Por isso mesmo, era tão fácil temê-la. O que ela estaria pensando sobre o fato de Felícia não querer gritar?
Tentando mudar de pensamento, Felícia olhou para o penúltimo integrante do clube do abuso.
─ E quem é você?
─ Eu sou o Amor. ─ O homem disse todo inflado.
─ E o Amor também pode entrar nesse clube? ─ Felícia assustou-se.
─ Claro que sim! Fui um dos primeiros a entrar. ─ O Amor riu. ─ Eu abuso porque amo! Não é culpa minha que as pessoas se deixem abusar por mim. Que tal, agora? Sente-se melhor para gritar? Aaaaaaah! ─ O Amor gritou. ─ Vamos, grite também! Ou você não me ama?
Felícia pensou. Ora, é claro que amava o Amor.
─ Mas o amor não deveria abusar. ─ Ela imaginou e falou, sem querer em voz alta.
─ Ah, mas até o Amor pode trazer sentimentos ruins. Todos podemos errar. São os outros que não podem abusar. Eu amo e sou amado por você, então tenho esse direito. Vamos, grite!
─ Já grito. Deixe-me ao menos ser apresentada à última pessoa dessa roda. Afinal, a Professora me ensinou a ter educação. ─ Felícia piscou para a Professora, que sorriu orgulhosa. Logo depois ela olhou o castelo. Quanto tempo mais aquilo iria durar?
─ Eu sou a Chefe. ─ A última mulher falou.
─ Chefe de quem? ─ Felícia questionou.
─ Chefe de tudo! ─ A Chefe sorriu.
─ Você é chefe de mim? ─ Felícia não estava entendendo mais nada.
─ Claro que sim. Por isso digo que você deve gritar, não há porque parar o trabalho. ─ A Chefe olhou profundamente para os olhos da menina. ─ Ou você não quer crescer e se tornar uma profissional ainda melhor?
─ Melhor no quê? ─ Felícia se sentia cada vez mais estranha ali.
─ Ora, melhor em se abusar! ─ A Chefe esperava a reação de Felícia, que olhava para os cinco sem perceber quem eram verdadeiramente. ─ Por que você acha que entrou nesse clube do abuso?
─ Eu não entrei por que quis. ─ Felícia balbuciou. ─ Na verdade, eu estava indo para o castelo e vocês me fizeram ficar.
─ E prova maior não há de que é você a maior abusadora do clube do abuso! ─ A Chefe gargalhou. ─ Viu só, acabei de te fazer subir no cargo.
─ Mas eu não queria esse emprego! ─ Felícia sentia as lágrimas brotarem em seus olhos. ─ Estou sendo abusada por vocês! Não sou uma abusadora… Não deveria estar nesse clube.
─ Felícia, estamos abusando de você porque foi você primeiro quem se deixou abusar. É a máxima regra do clube do abuso; só entra e é abusado, quem está se abusando. ─ A Chefe sorriu. ─ Sei disso porque sou a sua chefe. Fico olhando tudo o que não deveria pensar e todas as vontades que sente e não deveria ter. Sei, por exemplo, que deseja ir ao castelo, e não ficar aqui. Mas lhe digo que precisa ser educada.
Vendo que a menina nada falava, a Chefe sorriu.
─ Olha, se isso te deixa feliz, vou nomeá-la a rainha do abuso!
─ Não quero ser a rainha do abuso! ─ Felícia chorava. ─ Não quero ser abusada e nem me abusar. Estou indo embora!
Felícia saiu correndo o mais rápido que pôde do grupo. Enquanto corria, podia ouvir o clube do abuso gritar. Eles eram bons nisso, pois haviam treinado a vida inteira:
─ Você vai perder o cargo que todos sonhavam, Felíciaaaa! ─ A Chefe gritou.
─ Onde estava todo amor que você disse sentir por mim?? ─ O Amor gritou.
─ O que os outros vão pensar quando você contar que saiu do clube? ─ Gritou a moça Desconhecido.
─ Mas nós crescemos juntos e você nunca duvidou de mim! ─ Argumentou o Familiar, aos berros.
─ Não foi assim que você foi ensinada! ─ A Professora insistiu enquanto a saliva pulava de sua boca.
Mas os gritos foram, aos poucos sumindo. O coração de Felícia foi se enchendo de paz. Quando chegou perto do castelo, notou que ele era ainda mais lindo do que imaginou. Ao abrir a porta, acordou.


O texto “Clube do abuso” foi inspirado após a apuração da matéria “Amiga, você está em um relacionamento abusivo”.

18 de março de 2016

A Ordem das libélulas



Havia uma cidade em todo o reino animal na qual as religiões predominavam. A cidade era constituída de libélulas e entre seus habitantes existia um cidadão em especial chamado Wando. O jovem era ateu e como tinha ares de revolucionário, ele começou a enxergar diversos problemas na cidade causados pela religião.


Acontece que existiam várias ordens de diferentes cores. Porém, a Ordem que agora representava na cidade era a verde, esta, assim como as outras, queria determinar com quem as pessoas deveriam casar, como deveriam agir em determinados dias, como elas deveriam procurar Deus e até como achá-lo. Seria possível que um fator exterior interferisse tanto no interior?


Wando se revoltava com o ódio crescente que via de libélulas para libélulas. Afinal, elas eram tão similares: possuíam duas asas, uma cabeça e apenas tinham como ponto de divergência suas crenças. E isso bastava para desuni-las.


A população vivia para cumprir o que os cultos determinavam como importante, mas ninguém alcançava a perfeição esperada. Se alguém se destacava por sua abertura religiosa, então as outras libélulas o negavam e faziam prevalecer os seus pensamentos radicais e as suas crenças deterministas.


Chegou um momento da história das libélulas que parecia não haver mais saída, todos estavam direta ou indiretamente ligados às questões das Ordens e da existência. Não importava se você tinha uma opinião adversa, pois existia uma massa que a condenaria por não se encaixar nos padrões e fariam exercer a opinião geral, que não era sequer mais questionada e sim tida como uma verdade universal.


As Ordens se alteravam de acordo com os princípios que o governo eleito queria impor, mas a criminalidade, a educação precária e mau tratamento continuavam os mesmos.


O governo queria também enraizar uma verdade suprema: a de que ele era o melhor para todos, aliando isto a religião e vice-versa. Do outro lado estavam as libélulas tão alienadas que não percebiam a associação automática que faziam do bom governante com um bom cumpridor dos deveres religiosos.


Sei que parece estranho descrever toda essa situação, mas era nesse caos que viviam as libélulas.


Foi então que Wando entrou com uma ação no tribunal das causas religiosas, no qual ele exigiu a extinção das religiões. Inesperadamente a população o apoiou, cansados de viverem e de tamanha violência todos ouviram as provas que Wando reuniu de médicos, analistas, sociólogos e antropólogos. Todos o apoiaram em seu lema: “Se não houver religião a sociedade viverá de maneira saudável”.
No fim das contas a mudança se deu porque, vindo a calhar, o prefeito mostrou sua verdadeira face: ele era no fundo um ateu reprimido pelas forças governamentais exigidas para que chegasse ao poder.


A jovem libélula ganhou a ação e uma nova legislação sobre os cultos foi feita, nesta constava a proibição de qualquer tipo de prática religiosa. Naquele momento as libélulas apenas fizeram passar de um extremo ao outro: fazendo cumprir o determinado todas as seitas foram fechadas e a libélula que persistisse em praticar atos religiosos deveria retirar-se da cidade.


A intenção era a de criar uma sociedade em que não houvesse separações, nem brigas por distinções ideológicas. Todas as discussões seriam pautadas em aspectos científicos e os argumentos de uma discussão seriam reais e soldáveis, o Estado poderia enfim se desentrelaçar dos mandamentos religiosos.


Mas algo deu errado porque dentro de um mês a cidade se encontrava em um caos maior ainda. A violência piorou, as libélulas saíram desenfreadas em busca de uma liberdade que não sabiam ao certo como alcançar, de mistérios que não sabiam responder. Muitas que necessitavam de uma cura impossível perderam a fé, outras que haviam conseguido sair de vícios haviam voltado em outros piores.


O número de consultas em psicólogos e terapeutas aumentou e ninguém achava mais a razão de viver, entendia-se que nasciam para procriar e depois perdiam sua utilidade. Muitos começaram a se matar e entraram em loucuras próprias.


A ciência era usada de forma manipuladora, assim como a religião o fazia; todos achavam que seus argumentos científicos eram corretos e assim manipulavam as pessoas através de fatos concretos nos quais ninguém poderia duvidar.


Vendo a situação crítica Wando revogou a nova lei implantada, entrou numa nova ação expondo que as libélulas estavam perdidas psiquicamente sem suas devoções. A população o apoiou, o governo o confirmou em todas as suas teorias e a única coisa que o tribunal podia fazer-lhe era dar a ação ganha.


Wando entendeu que as libélulas tinham uma pretensão a impor e achar que apenas sua opinião era a verdadeira e que isso não é um problema puramente religioso. A cidade voltou a ter cor, porque as cores são mesmo assim; só o fato de você preferir uma não quer dizer que a outra seja errada. Além de que sem elas o mundo fica preto e branco.


Querer impor uma ideologia e fazer com que todos pensem como um o faz é o que as libélulas têm de fato de tomar cuidado. É o problema real de toda libélula.

4 de março de 2016

A eternidade num pé de feijão



Algum dia você já acordou com a sensação latente da frugalidade do tempo? Uma sensação de que todos os problemas são passageiros e que, dali a pouco, não iremos mais nos deparar com eles?


Então, você olha para as pessoas em uma estação de metrô, trem, ônibus ou até de uma rua, e acontece o mais completo discernimento; todas elas vão simplesmente desaparecer. Daqui a muitos anos, ninguém que estava nesse vagão lotado continuará aqui.


Vê aquela menina? Provavelmente é a primeira vez na vida que você a avistou, mas será também a última. No entanto, vocês compartilham um pedaço de tempo próximos. Por que você está compartilhando um lapso de minutos ao lado dessa pessoa, que provavelmente nunca mais verá? Não importa e também não há no que pensar. A única certeza é que um dia ela não estará mais aqui e o leitor ou leitora também não.


Então, nesse instante de lucidez, pensamos em quantas formas há para se viver. Procuraram tanto o elixir da vida eterna, sem perceberem que apenas morremos quando todas as pessoas que se lembrarem de nós não mais forem capazes de lembrar.


E eu não estou falando da menina, que colocamos a nossa atenção. Em alguns minutos, ela não se lembrará mais de sua existência. É por isso que existem livros, músicas, danças e todas as formas de arte. Pegamos emprestado a história do outro e do mundo para podermos viver.


Por isso que Beatles pode parecer tão próximo quanto Júlio Verne. Eles estão por perto porque estamos lembrando deles quase que o tempo todo. Então, eles vivem para alguns. Mas enquanto viverem, mesmo que para um, já será o suficiente.


E os mortos também podem renascer das cinzas. Um livro escrito ao acaso após tanto tempo é capaz de revelar um autor ou história que passam a ser lembradas e, portanto, existem.


Veja que não é necessário ser Picasso. Todos os dias somos consequências dos mortos e da frugalidade que agora você sente em suas veias. Somos a reposta que nossos pais deram para o mundo, e eles são de nossos avós, e avós de bisavós e bisavós de tataravós, até que sejamos todos de uma família só.


Claro que essa reposta para a vida eterna não é o suficiente. Afinal, se pensarmos que pode existir um dia em que a população toda da terra morrerá, então quem será eterno se não há alguém para recordar? Além do mais, não há como sentir que é preciso ser eterno se não há memória.




Claro que não pensamos muito em todas essas coisas, porque a vida chama para o agora a todo o momento. Dali a segundos, os problemas voltam a ser tão imensos e intensos como uma avalanche.


O incrível é: o que nos tira dessa transe de morte e alerta para a vida e o instante não são os problemas, mas os sentimentos. Não é estranho?


Por que algo tão fugaz e passageiro é capaz de nos trazer de volta? Sentimentos. Raiva, felicidade, amor, tristeza. Qualquer um pode senti-los a qualquer hora mesmo que durante um piscar de olhos. Assim, eles estão longe de durarem para sempre em uma vida, mas perto demais de serem universais e existências. Se todos os seres humanos que existirem podem senti-los, então eles são eternos.


Talvez nada seja melhor do que a eternidade para nos acordar da própria.


Mas por que precisamos acordar? Bem, deve existir um motivo para os sentimentos desejarem que vivamos o agora. Talvez a razão seja a procriação. Uma questão biológica; não deixar que o planeta se esvazie. Para isso, também nos alimentamos e é possível gerar alimentos a partir de outros. É preciso comer arroz, frutas, peixe. Plantamos aquela muda de pé de feijão na pré-escola para entendermos que é assim que funciona a vida. E você achando que era só um pé de feijão.


E por que nos dar a capacidade de procriar e viver, gerando alimentos a partir de outros, com o objetivo de que o planeta não se esvazie? Ora, não parece óbvio? Para que todos nós possam viver para sempre. A eternidade num pé de feijão.

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